O ano chega ao fim e, entre as centenas de lançamentos que chegaram às livrarias, há pelo menos um grande destaque: a dupla oportunidade de o leitor brasileiro conhecer as palavras da uruguaia Cristina Peri Rossi, uma das mais importantes escritoras latinoamericanas contemporâneas, por meio da prosa vertiginosa de “A insubmissa” (Bazar do Tempo) e da força da poesia reunida em “Nossa vingança é o amor: Antologia poética (1971-2024)”.
Vencedora em 2021 do Prêmio Miguel Cervantes, a maior honraria da língua espanhola, Peri Rossi nasceu em Montevidéu em 1941. Aos nove anos, anunciou para a família que seria escritora – e foi desestimulada por todos, com exceção da mãe. Um tio chegou a dizer para ela que mulheres não escrevem e, as que escreveram, se mataram. O episódio é lembrado no relato autobiográfico de “A insubmissa”, que ganhou na edição brasileira posfácio da pesquisadora Anita Rivera Guerra, especialista na obra de Peri Rossi.
Tradutora de “A insubmissa”, Rivera Guerra chama o livro de “espécie de romance de formação feito de colagens de memória e ficção” e uma tentativa da autora de colocar em palavras a parte menos conhecida de sua vida, antes de sair do Uruguai, no início dos anos 1970 e ter os seus livros proibidos durante a ditadura militar que governou o país de 1973 a 1985. “O relato da própria infância é também uma forma de contar uma história que não pôde existir: a de uma vida interrompida pela violência de um Estado que tentou apagar sua presença já prolífica no mundo intelectual e político de Montevidéu”, aponta Anita Rivera Guerra, que pesquisa a obra da uruguaia desde 2016 e escreveu, para esta edição do Pensar, um artigo sobre Cristina Peri Rossi.
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Vivendo na Espanha desde os anos 1970, Peri Rossi obteve a nacionalidade espanhola (“Falo a língua dos conquistadores/ mas digo o oposto do que eles dizem”, escreveu no poema “Condição de mulher”) e trabalhou como professora de literatura, tradutora e jornalista. Entre os mais de 40 livros publicados e traduzidos para mais de 20 idiomas, se destacam títulos que refletem a postura combativa de luta contra ditaduras, defesa do feminismo e dos direitos homossexuais. Seus versos têm como tema recorrente o erotismo lésbico, explicitado já no primeiro volume de poemas, “Evoé”(1971). “Nunca aceitei normas sociais baseadas em preconceitos ou ordens que me parecessem injustas, viessem de quem fosse: do meu pai, da Igreja ou do governo. Decidi ser fiel a mim mesma”, disse, em entrevista recente ao repórter Ruan Gabriel, em O Globo. “Se eu pudesse definir completamente o que são o amor e o desejo, não teria por que continuar escrevendo. Escrever também é um desejo. E o desejo é sempre desejo insatisfeito, senão deixa de ser desejo”, afirmou ao jornalista brasileiro.
Para a edição bilíngue de “Nossa vingança é o amor”, Ayelén Medail e Cide Piquet traduziram 150 poemas dos 18 livros da autora. “Os poemas que compõem o livro foram escolhidos a partir dos critérios de qualidade, traduzilibidade e representatividade dos principais temas abordados pela poeta (desejo e homoerotismo, exílio, política, feminismo, amor e desamor, memória, transgressão, metapoesia, écfrases, a passagem do tempo e a proximidade da morte) mas também por sua capacidade de entrar em ressonância com a atual poesia brasileira”, explicam os tradutores, na nota introdutória.
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Responsável pelo lançamento de “Nossa vingança é o amor”, a Editora 34 anuncia, para o próximo ano, o lançamento do primeiro título autobiográfico de Cristina Peri Rossi: “Julio Cortázar e Cris”, sobre a amizade da uruguaia com o autor de “O jogo da amarelinha”, iniciado por meio da correspondência de seus respectivos exílios; Cristina em Barcelona, por conta da ditadura uruguaia; e Cortázar em Paris, por conta da ditadura argentina
Peri Rossi tem conexões com a literatura brasileira. Tradutora de Graciliano Ramos e Ignácio de Loyola Brandão, ela contribuiu decisivamente para a disseminação da obra de Clarice Lispector na Espanha. “Quando li Clarice pela primeira vez, tive a convicção profunda de que aquela era uma literatura feminina. Eu já havia lido Simone de Beauvoir e Virginia Woolf, mas Clarice é diferente: não há uma teoria feminista ali, e sim uma obra inclassificável. Pouco depois de me exilar, trabalhei numa editora e seduzi a diretora para traduzir Clarice, então completamente desconhecida na Espanha”, contou a Ruan Gabriel.
Disposta, desde pequena, a enfrentar uma sociedade que insistia em representar “um NÃO gigantesco contra meus desejos”, Cristina Peri Rossi faz da escrita um ato de sobrevivência. “Tudo me fazia pensar que nascer mulher era perigoso, inferiorizante e desigual”, narra em “A insubmissa”. Assumiu o confronto: “Sou a adventícia/ a perturbadora/ a desordenadora dos sexos/ a transgressora”, afirma, no poema “Condição de mulher”. E, à opressão e violência, responde com o mais nobre dos sentimentos. “O amor existe/ como um fogo/ para abrasar em sua beleza/ toda a feiura do mundo”, decreta em poema do livro “A noite e seu artifício”, incluído em “Nossa vingança é o amor”.
“A INSUBMISSA”
De Cristina Peri Rossi
Tradução de Anita Rivera Guerra
Bazar do Tempo
206 páginas
R$ 78
Trecho do livro
De “A insubmissa”
Tradução de Anita Rivera Guerra
“Não te amei. Não pude te amar. Não é possível amar alguém que causa tanto dano, mesmo que seja um dano inconsciente. E o fato de que eu não te amava te tornava mais hostil, mais violento, mais perseguidor, mais tortuoso, mais fracassado e mais solitária. Em vez de amor, você obteve meu terror. É um antigo e pavoroso recurso: aqueles que não conseguem ser amados às vezes conseguem ser temidos. Suas tentativas de sedução eram tão violentas quanto a vingança por sentir-se rejeitado. Eu só queria que você me deixasse em paz, que se esquecesse de mim, mas você não estava disposto a isso, como se uma força obscura te conduzisse ao inevitável fracasso, como se, ao desejar ser amado, você tivesse se precipitado ao ódio. Foi uma luta violenta, cruel, desproporcional, como qualquer luta entre um homem e uma menina. Eu te enfrentava tremendo, mas te enfrentava, e isso te irritava ainda mais, era algo que você não podia tolerar. Das mulheres que amava, você sempre exigiu submissão, e nunca conseguiu, nem através da violência, nem através da sedução. Você teve que morrer para que tanta paixão equivocada se tornasse compaixão e para que suas três mulheres (sua esposa e as duas filhas) te dessem algo do afeto que você não recebeu estando vivo e saudável.”
Poemas selecionados
(De “Nossa vingança é o amor”, de Cristina Peri Rossi)
Tradução de Ayelén Medail e Cide Piquet
“Oração”
Silêncio.
Quando ela abre as pernas
que todo mundo se cale.
Que ninguém murmure
nem venha
com contos nem poesias
nem histórias de catástrofes
nem cataclismos
pois não há melhor enxame
do que seus cabelos
nem abertura maior que a de suas pernas
nem abóbada que eu contemple com mais respeito
nem selva tão fragrante quanto seu púbis
nem torres nem catedrais mais seguras.
Silêncio.
Orai: ela abriu as pernas.
Todo mundo de joelhos
*
Tenho uma dor aqui,
do lado da pátria
*
“Carta de mamãe”
Carta de mamãe:
“E se todos forem embora, minha filha,
o que vamos fazer, nós que ficamos?”
*
“Os exilados”
Perseguem pelas ruas
sombras antigas
retratos mortos
vozes balbuciadas
até que alguém lhes diz
que as sombras
os passos as vozes
são um truque do inconsciente.
Então duvidam
olham incertos
e de repente
começam a correr
atrás de um rosto
que lembra outro rosto antigo.
Não é diferente
a origem dos fantasmas.
*
“Estado de sítio”
Aquela vez — estado de sítio na cidade
sirenes ambulâncias tanques verdes
como pesados lagartos
e o medo crescendo como erva daninha —
acreditamos que seria a última vez.
Fizemos amor com a intensidade da agonia
amar antes de morrer
amar até morrer
fizemos amor com o desespero
da partida
e teus gemidos eram a dor do orgasmo
teu pranto o pranto da perda na união.
Os soldados não chegaram,
passaram ao largo
ou foram para outra casa.
Nunca mais houve uma noite como aquela
compartilhar o medo
o terror o pânico
une mais do que compartilhar a felicidade
a bem-aventurança.
Desde então,
busco a intensidade em outra parte
e não a encontro nas drogas
nem no álcool
nem nas orgias
a intensidade está no meu interior
colada à minha fantasia.
*
“Literatura”
“Tudo você transforma em literatura”,
você me critica
“tudo, amores, viagens, passeios,
Discussões, tudo você transforma em
Literatura”,
você me critica
está exagerando
só uma mínima parte
tão mínima que às vezes penso
que não tem importância
e em todo caso
é melhor do que a morte
que transforma tudo em pó.
*
“Considerando”
Tendo em conta e considerando
o progressivo degelo dos mares
o efeito estufa
a extinção veloz das espécies
a fome feroz na África e a aids
as guerras religiosas no Oriente
as milhares de mulheres assassinadas
pelos homens que lhes são mais próximos
a progressão do câncer
a infibulação das meninas
o aumento do preço do petróleo
o turismo sexual na Tailândia
as múltiplas torturas impunes
o numeroso grupo de ditaduros
e ditabrandos
o tráfico de armas
o tráfico de órgãos
o tráfico de mulheres
as chacinas os genocídios
os estupros e os acidentes automobilísticos
o fato de que você e eu já não fazemos amor
é simplesmente irrelevante.
*
“Viver para contar”
Eu te cedi uma vez
o papel e o lápis
a voz que narra
a crônica que fixa contra a morte
a nostalgia do vivido.
E me dei bem com a mudança
te garanto.
Quero contemplar
quero ser testemunha
quero me olhar viver
te cedo com prazer a responsabilidade
como um escriba
ocupe meu lugar
goze se puder com a permuta
você será minha descendência
minha alternativa.
A que viveu
