Jacques Fux e Gerson Mazer equilibram riso e dor em 'Circenses'
Escritor e ilustrador entrelaçam memória e ficção ao narrar a saga de uma família judaica e livro para crianças que tem na capa uma pintura de Marc Chagall
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Carlos Reiss
Especial para o EM
Nada mais apropriado para representar o riso e a dor do que o circo chagalliano, um universo em que a fragilidade e a alegria convivem e são sustentadas por uma atmosfera de fantasia. Afinal, Marc Chagall era um pintor de memórias, metáforas e magias. Em “O cavalo de circo” (1964), que ilustra a capa de “Circenses”, novo livro do premiado Jacques Fux, desta vez em parceria com Gerson Mazer, Chagall destaca uma artista equilibrista, sustentada por um cavalo.
A amazona sobre o cavalo, junto aos acrobatas com suas vestes coloridas, é o resumo do esforço dos autores em materializar, por meio de capítulos transformados em atos, algumas trajetórias e entrelaces históricos ligados às raízes judaicas na Europa Oriental. A arte da luta contra a queda. Porém, os méritos de Circenses ultrapassam a beleza artística da capa e a evocação de Chagall explícita em um dos atos. A obra é, no perdão da metáfora, um espetáculo em que tema e forma se encontram em raro equilíbrio. Como a equilibrista em seu cavalo, no centro do picadeiro. Ela dá o tom do livro.
Aos leitores, soa curioso e inusitado o cruzamento entre o povo judeu, suas errâncias e memórias, e o universo vibrante do circo. Um enlace improvável que se revela, página a página, tão coerente quanto poético. Improvável e delicado, sim, mas não inédito: o Museu do Holocausto de Curitiba, pioneiro no Brasil, já havia ensaiado essa aproximação ao lançar, em 2022, o material educativo “Desrespeitável público: o circo como possibilidade de resistência durante o Holocausto”. Ainda assim, é em “Circenses” que esse diálogo alcança sua tessitura mais refinada. Mais um equilíbrio, dessa vez entre pesquisa histórica e lirismo narrativo, conduzido com a leveza de quem transforma dor em arte e memória em espetáculo.
Durante séculos, os circos europeus foram conduzidos por grupos minoritários, reunindo artistas de múltiplas partes do mundo e das mais diversas origens: ciganos de diferentes etnias (roma, sinti, calón, romanichal), judeus de variadas ascendências, yeniches, além de pessoas com deficiências, entre tantos outros. Essa arte popular e antiga tinha na sua essência transnacional uma espécie de fresta por onde a alteridade podia ser acolhida, ainda que precariamente. Com os abalos trágicos do século XX, muitos desses artistas se dispersaram, transformando o nomadismo em destino forçado. Não é casual, portanto, que Fux e Mazer ressaltem que “o equilibrista judeu (e tantos refugiados e imigrantes) é continuamente desequilibrado”. Afinal, se o circo é uma metáfora de sobrevivência, as fugas e migrações são sua concretude dolorosa.
Arte, lutas e traumas permeiam “Circenses” como pequenos atos de um espetáculo íntimo, em que as histórias se desdobram com leveza, mas nunca superficiais; em ordem não linear, mas sempre compreensíveis; em brevidade, mas carregadas de ressonância. Os nomes próprios que surgem (Shmil, Rosa, Sara e tantos outros) evocam de imediato as identidades judaicas, aquecendo nosso coração e fornecendo ecos de memória e pertencimento à leitura em cada passagem, anedota ou desafio. Por trás desses nomes, pulsa a saga das imigrações judaicas. As travessias forçadas e reinvenções constantes encontram no livro um espaço de dignidade.
“Circenses” é um deleite raro. Duro e áspero, ao mesmo tempo que doce e delicado. Num tempo em que a empatia está sob risco e parece se esvair, mergulhar nessas histórias é exercitar a alteridade em sua forma mais sensível e artística. Em meio aos intermináveis ciclos de ódio e intolerância, o texto de Fux e Mazer oferece não apenas memórias judaicas, narrativas de migrantes ou ecos de artistas circenses, mas lampejos de humanidade que nos devolvem o sentido do comum. Porque riso, dor e equilíbrio são línguas sem fronteiras — e este livro, em sua força, pertence a todos nós.
CARLOS REISS é o coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba
“Circenses”
De Jacques Fux e Gerson Mazer
148 páginas
R$ 56,90