Literatura

Primeira leitura: 'Os verbos estão cansados', de Alexandre Brandão

Livro do escritor mineiro reúne 17 histórias curtas e terá lançamento em BH na terça-feira (16/12)

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“A descoberta” 

Naquele dia, a criança, criança assim bem criança, mas não muito, descobriu uma coisa. Tudo foi acontecendo, acontecendo e, de repente, aconteceu; e, nesse momento, a criança não soube dizer o que era. 

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Às quatro horas da tarde, ela estava no quintal, embaixo do abacateiro, embaixo e encostada nele. O vento soprava tudo e levantava as folhas do chão. Era gostoso tomar o vento. Um passarinho miúdo, que a criança não conseguia ver, mas sabia bem que estava no tronco da mangueira logo em frente ao abacateiro, piava como a gente da casa cantava no banheiro, na hora do banho, ou seja, sem compromisso, pouco se importando com o resto do mundo. O passarinho cantava melhor que o pai, a mãe e a irmã da criança. 

Ela gostava tanto do quintal que não havia dia em que não fosse brincar nele. Com amigos ou sozinha, não se importava. Então vento, passarinho, abacateiro, mangueira formavam o seu mundinho. Se perguntassem a ela o que era o mundo, ela corria a responder: o quintal. O quintal. 

Encostada no abacateiro, começou a sentir, a sentir. O que é isso? Ela quase gritou, e só não o fez porque teve medo de alguém sair da casa para ver o que se passava e, não encontrando nada diferente, se assustasse. O que foi, nossa criança? Você viu alguma coisa? 

Ela não viu nada, o que acontecia não era de ver. Era uma assombração que não metia medo, que simplesmente existia. Onde? Nela, na criança. O acontecimento acontecia nela. Isso, fosse o que fosse, media um tamanho acima do grande, fazendo a criança pensar que deveria ter medo. Tenho de ter medo, mas ela não tinha, não se convencia a ter. 

A assombração, ou a coisa, ou o nada, começou a interferir na respiração da criança. Primeiro, a fez respirar rápido e forte. Aos poucos, a respiração voltou ao normal e, em seguida, ficou lenta. Faltava ar, apesar do vento, que se exibia levantando as folhas, espalhando poeira. Apesar do passarinho, que, sem ar, não cantaria, e estava cantando. A criança não pensou na morte, pois ainda não lhe passava na cabeça a ideia ou o medo da morte. Ela apenas sentia. Voltou a respirar bem, mas, em instantes, a respiração acelerou, o peito encheu e murchou velozmente, e, de novo, voltou ao normal. A respiração parecia ter sido desligada. Não desligada, mas era como se a criança ouvisse música e de uma hora para outra o som fosse diminuindo, diminuindo. Sim, como se o som diminuísse sem que ninguém mexesse em sua regulagem. 

Resolveu andar. Não muito. Sair do abacateiro, ir para debaixo da mangueira. Olhar para cima, flagrar o passarinho, dar-lhe um susto, um sustinho. Na realidade, dividir o seu susto com ele. A criança amaldiçoava estar sozinha. Se gritasse pelo Zezinho? Pela Mel? Se assobiasse para o cachorro e o chamasse: Vem, Xampu! Sentia-se impedida. Se estar sozinha não lhe agradava, estava certa de que não poderia estar de outro jeito. A caminhada restabeleceu a respiração. 

Foi repetidas vezes do abacateiro à mangueira e da mangueira ao abacateiro. Uma hora um cisco entrou em um de seus olhos, e ela o fechou. Fechado, pensou, o cisco se ajeita lá dentro e some. Mas não foi assim, e ela então coçou o olho fechado com o indicador dobrado. O cisco incomodou mais ainda, mas, em seguida, uma água — de fato, uma lágrima, mas a criança não a reconheceu, pois não estava chorando — molhou o olho por dentro, tornando possível reabri-lo e rever o velho mundinho agora um pouco umedecido. Esqueceu por um momento o que vinha passando. O cisco distraiu sua atenção, e ela agradeceu por isso. Mas não demorou muito a sentir tudo outra vez. A assombração crescendo dentro dela. A respiração saltando de uma cadência para outra. O passarinho estava diferente, quieto, quem sabe tivesse voado. O vento também se aquietara. A criança então sentou-se no chão de terra. Dobrou os joelhos, envolveu-os com os braços. Como estava sentada entre o abacateiro e a mangueira, ao olhar adiante, com o queixo apoiado nos joelhos, viu, à esquerda, a laranjeira que jamais deu laranja, à direita, um balde enferrujado e, no final do quintal, o muro. Lá da cozinha, chamaram por ela. Hora do leite com pão. A criança gostava tanto do lanche da tarde. Já ia correndo para dentro de casa, quase esquecida do que lhe aconteceu ou acontecia, mas resolveu olhar mais uma vez com atenção a laranjeira sem laranja, o balde enferrujado, o muro. O muro. 

A partir daquele dia, e enquanto durou a infância, a criança passou uma, duas, três, muitas vezes por uma situação semelhante — inexplicável. Na juventude, reconhecia aquilo e sabia lidar com o que associou à esterilidade, à decomposição e ao muro, o impedimento.

SOBRE O AUTOR 

Nascido em Passos (MG) e radicado no Rio de Janeiro, Alexandre Brandão (foto) já publicou livros de poesia, contos e crônicas. “Os verbos estão cansados”, reunião de 17 histórias curtas, marca a volta do escritor mineiro ao gênero que marcou sua estreia literária, 30 anos atrás, com “Contos de homem”. “Como o leitor logo perceberá, o livro é recheado de perguntas”, afirma, no prefácio, a psiquiatra e escritora Juliana Garbayo. Às vezes elas aparecem literais, refletindo o processo de busca dos personagens, às vezes são simbólicas e estão representadas no ato de pegar o trem errado, de passear por uma cidade em busca de um bar que não se sabe se existe na realidade ou só nas páginas de um livro.” Para Garbayo, “ler ‘Os verbos estão cansados’ é se deixar levar por esse jogo onde cada resposta é, na verdade, o início de uma nova pergunta.”

“OS VERBOS ESTÃO CANSADOS”

De Alexandre Brandão

Editora Patuá

116 páginas

R$ 60

Lançamento na terça-feira (16/12), a partir das 18h, no Agosto Butiquim (Rua Esmeralda, 162, Prado, Belo Horizonte).

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