Renata Belmonte: ‘O que eu desejo é o espetáculo da introspecção’
Escritora baiana conta como nasceu o novo romance,"Piscinas russas", as conexões com o livro anterior e por que se recusa a concluir 'Grande sertão: veredas'
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Qual o ponto de partida de “Piscinas russas”? Como descobriu a arquitetura do livro?
Certa vez, li que Freud dizia que o pensamento é o ensaio da ação, mas que Lacan, sabiamente, pôde complementar esse raciocínio deixando claro que é preciso também o movimento, pois, no ensaio, não há risco. E nada se realiza, de fato, sem o consentimento do imprevisível. Assim, o que eu aprendi, a duras penas, sendo uma pessoa que tende a desejar o controle sobre todas as variáveis da minha existência, é que caminho se faz caminhando. E que o romance perfeito é aquele que você nunca será capaz de escrever porque ele repousa justo no campo do impossível. Portanto, quando percebo um tumulto literário se fazendo dentro de mim, coloco-me à disposição absoluta do texto e deixo que ele me leve. Nesse processo, escuto muito o que me dizem as personagens e começo a dar forma ao livro de modo bem empírico, tentando entender suas vísceras, até um mapa seu parecer possível. “Piscinas russas”pode ser lido, inclusive, a partir desta chave: se amar é sempre arriscado, o que Malena Matrice, a protagonista, deve fazer com todas as proteções que criou para ignorar o que não desejava saber? Como ela vai encontrar, em si mesma, a linguagem necessária para dar conta do inevitável que ela, por anos, evitou ver, mas que tanto se aproxima?
Por que você acredita que “os livros se escrevem”? E o que foi necessário fazer para se colocar “à disposição do enigma” da escrita?
Porque, ao contrário do que se costuma dizer, o papel não aceita tudo como literatura. As histórias, na medida de suas escrituras, passam a tentar uma independência de seus criadores, sinto-me, inclusive, mais uma tradutora de palavras do que, exatamente, uma inventora. Caso eu insista em escrever apenas a partir do meu desejo, as histórias que estou construindo parecerão monolitos, coisas rígidas, maus simulacros. E o que eu desejo é o espetáculo da introspecção, a pincelada que permite o respiro. Portanto, não posso deixar de escutar o que me pede a personagem, tenho que contorná-la aceitando que participo de dois jogos cujas regras ignoro, pois assim é a escrita e a vida.
Seus dois romances acabam estabelecendo uma relação de intertextualidade. Seu livro anterior, “Mundos de uma noite só”, aparece como referência logo no começo de “Piscinas russas”. Foi sua intenção que eles funcionassem como um díptico desde antes? Quando você terminou “Mundos já pensava em “Piscinas”? Teremos uma trilogia afetiva?
Não, tudo se fez de uma forma que se tornou impossível interromper o profundo laço que existe entre os dois, mas que eu apenas descobri quando do início do “Piscinas russas”. Surgiu um fluxo criativo impossível de ser contido. Pensava que o “Mundos de uma noite” só seria um romance único, mas ele demandou, de uma forma muito bonita, a presença deste irmão. E, não, não é simples escrever e publicar textos que possuem uma ligação tão íntima. Do ponto de vista racional, inclusive, por questões editoriais, não faz o mínimo sentido, já que a necessidade de uma aposta do outro, no meu texto, duplica. Mas tudo que precisa nascer encontra seus próprios desígnios. Sinto muita sorte por ter escrito o “Piscinas russas” e prometo me escutar com cuidado para saber se virá mesmo um terceiro livro.
Por que acredita que um dos desafios da literatura contemporânea é a criação de personagens?
Porque, neste período em que vivemos, além de uma crescente crise atencional que impede a apreensão pelo leitor de construções literárias menos didáticas e mais densas, estamos contaminados pelo vício da imagem. Há uma demanda para sustentarmos, em público, o tempo todo, posições virtuosas que não destoem do consenso vigente do grupo que desejamos pertencer. Dissidências não são mais percebidas como convites para novas formas de pensar, tornaram-se inimizades, de pronto. Há um discurso de aplainamento da experiência, eliminando, paulatinamente, traços de singularidades em prol de tickets imaginários de entrada em comunidades específicas. E como as editoras precisam buscar resultado financeiro, suas escolhas tendem a privilegiar textos que “agradam”, de antemão, o maior número de pessoas interessadas em “consumir”seus “produtos/temas-livros”. E tendo em vista que este ideário é organizado por algoritmos unificadores das bolhas, resta pouca aposta em textos mais subversivos, que não refletem as projeções perfeitas dos leitores e que recusam rótulos fáceis. Mas, curiosamente, acredito que sempre haverá uma fresta para a ruptura destes comportamentos limitantes e que cabe ao artista forçar esse passo. “O povo sabe o que quer. Mas o povo também quer o que não sabe”, já disse Gil. Sim, eu tenho muita fé no potencial infinito das artes.
Por que, para o livro, filmes, fotografias e espelhos são tão importantes?
A Malena sempre olha para a realidade, a partir de lentes representativas, pois elas a ajudam a se sentir, paradoxalmente, tanto próxima quanto protegida de pessoas ou coisas que podem lhe causar dor. Estes são os recursos que encontra para se aproximar daqueles que ama, ao mesmo tempo, em que também tenta não se vulnerabilizar tanto. Nos filmes, fotografias e espelhos, há uma toda uma linguagem que ela acredita dominar, em seus começos, meios e fins determináveis. Mas essa sua ilusão de controle é colocada à prova, no instante em que resta devorada pelo segredo de sua família (fantasma?) que mais temia.
A gente percebe um trabalho muito cuidadoso com as frases, com a sonoridade, com o ritmo do texto, mas sem perder de vista a profundidade das personagens. Quais são as referências de seu projeto literário?
Eu me apaixonei pela literatura, ainda muito cedo. E foi quando do meu encontro com “O amante”da Marguerite Duras, aos dezesseis anos, que tive uma epifania que mudou minha existência. Eu descobri que, mesmo quando um acontecimento foi ruim, se narrado de modo bonito, ele resta ressignificado e ganha dignidade, pois passa a habitar o mundo do dito e pode ser melhor enfrentado. Tenho um projeto literário cuja estética é central, sim. Acredito no potencial transformativo da palavra. Hilda Hilst, Marguerite Duras, Clarice Lispector, Herberto Helder, Helena Machado, Marília Arnaud, Carola Saavedra, Mohamed Mbougar Sarr, Luiz Ruffato, Coetzee, Guimarães Rosa e Kafka são nomes caros no meu repertório ficcional.
Numa época que a escrita tem se voltado para a própria vida do próprio autor, com diferentes níveis de complexidade, seu romance é povoado com vários personagens diferentes de você, atravessando gerações, mesmo que exista, a certa altura, um breve jogo de referências com uma Renata Belmonte também dentro do livro. Como enxerga essas questões da escrita de si?
Há uma música do Ney Matogrosso, chamada “Mal necessário”, em que ele canta: “Sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher. Sou a mesa e as cadeiras deste cabaré”. E sempre que eu a escuto, penso no meu próprio processo criativo. Porque a verdade é que tudo que busco, enquanto escrevo, é a possibilidade de escapar de mim, de experimentar existências diversas, inclusive, algumas antagônicas ao que desejo viver enquanto um sujeito no mundo. Tenho fascinação pelo avesso das coisas, bem como por todas as escolhas morais que as pessoas fazem e os discursos (ou silêncios) que constroem para si mesmas. Não tenho nenhuma objeção preliminar ao exercício da autoficção, vejo-o apenas como mais um recurso possível, gosto muitíssimo, inclusive, da obra do Didier Eribon, por exemplo. Existem livros estonteantes em que autor e personagem parecem se confundir. No entanto, preciso dizer que me preocupa, sim, uma certa incapacidade de fabulação contemporânea e a tendência atual de se sustentar a comunhão leitora apenas a partir de um frágil (mas que se pretende absoluto) pacto de “identificação” entre personagem/autor/leitor. Sem a capacidade de se colocar no lugar do outro, de imaginar um além de si, só nos restará passados e presentes definidos. Fora que esse modo “reality show” de buscar a literatura, marca desta era das redes sociais, parece não suportar muito mais do que caricaturas sobre quem deve ser um escritor e o que ele precisa “oferecer”para os que “consomem” seus “produtos”. Como concebo a minha literatura como um espaço não utilitário, no qual as ambiguidades e alteridades são soberanas, no qual tento construir um palco para que o humano possa se revelar em todas as suas esquinas, a liberdade de fugir desta coisa em movimento chamada eu, de fato, é o que mais me encanta e me guia.
Em entrevista à TAG Livros, você afirmou que não conseguiu concluir a leitura de “Grande sertão: veredas”. O que a impede de terminar e o que a leitura até agora já proporcionou?
Fui uma criança com uma sensação profunda de inadequação e encontrei, nos livros, os meus próprios espaços de pertencimento. Assim, não vejo problema algum em me demorar nos grandes romances, sinto-me confortável em ficar perdida entre seus êxtases da língua. Tenho prazer em me demorar nas construções das personagens, converso muito com as autorias. São os grandes escritores que me fizeram companhia, ao longo da minha existência. Mas talvez haja também, nesta minha recusa em seguir até o final do “Grande sertão: veredas”, um certo medo do fim, do vazio que terminar este livro, inevitavelmente, me traria. Tenho imensa dificuldade de dizer adeus ao que se confunde para mim com a própria vida. Isso, inclusive, é a gênese da minha escrita.
SOBRE A AUTORA
Nascida em Salvador, Renata Belmonte é autora do romance “Mundos de uma noite só” (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2020 e semifinalista do Prêmio Oceanos de 2021) e de três livros de contos: “Femininamente” (Prêmio Braskem de Literatura, 2003), “O que não pode ser” (Prêmio Arte e Cultura Banco Capital, 2006) e “Vestígios da Senhorita B” (2009). Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e mestra pela Fundação Getulio Vargas (FGV), a autora é também advogada. Lançado pelo selo Tusquets, da editora Planeta, “Piscinas russas” é o segundo romance da autora.
Resenha / 'Piscinas russas'
Laços de gerações familiares
MARCOS VINÍCUS ALMEIDA
ESPECIAL PARA O EM
“Dentre as coisas de Vivian que lhe foram entregues anos depois de seu suicídio, Malena se lembra de duas, em especial: um mapa-múndi com o nome Brazil circulado e um caderno de anotações que parecia indicar o desejo da mãe de escrever um romance”, assim nos conta a personagem Renata Belmonte Grimaldi, jornalista e biógrafa da multiartista Malena Matrice. Famosa nos anos 1980, Malena conviveu com Andy Warhol, Susan Sontag e outras figuras ilustres da cena norte-americana. “Como você sabe, antes de ‘Piscinas russas’, cogitei, novamente, o suicídio”, confessa para sua biógrafa. “De uma hora para outra, assim como aconteceu com minha mãe, eu também acabei me descobrindo enganada pela pessoa que mais amava”.
Enquanto Renata Belmonte, personagem do livro, escreve a biografia intitulada “Depois dos fins dos mundos - Malena Matrice: uma quase biografia”, a própria Malena prepara uma exposição chamada ‘Piscinas russas’, da qual Renata Belmonte (talvez a real, talvez a personagem dentro do livro), também participa. Malena lê o livro anterior de Renata, “Mundos de uma noite só” (Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2020 e semifinalista do Oceanos), gerando mais uma camada de ficcionalidade que lembra o movimento de uma matriosca.
Esses índices, típicos dos jogos metaficcionais contemporâneos, constroem um pacto ambíguo de leitura. Referências a personagens reais, como artistas, atores, celebridades, ou a fatos históricos como sessões de tortura na ditadura militar de 1964 ou passagens recentíssimas como a Operação Lava Jato e a pandemia do coronavírus, apontam para o mundo fora do livro. E essa similaridade - não há coincidência exata - entre o nome da escritora na capa do livro e o da biógrafa dentro do livro acabam reforçando esse aspecto indecidível. Somos rapidamente seduzidos e capturados pela retórica da realidade.
O leitor certamente ficará tentado (como este que vos escreve confessa sem culpa), em ir ao Google verificar a existência, não só da protagonista Malena Matrice, mas também da coadjuvante Renata Belmonte Grimaldi, a jornalista do livro, com esse último sobrenome. Na vida real, o paratexto da orelha nos diz que a pessoa física Renata Belmonte é, além de escritora, advogada. Aqui o conceito de autoficção entraria no campo de um baile de máscaras: um escritor capturado, ficcionalizado e subjugado por seu próprio personagem. “Venha, Renata. Feche os olhos. Deixe-me que lhe conte sobre o instante mais lindo da minha vida.”
“Piscinas russas” se desdobra por três gerações de duas famílias. E aqui as similaridades e repetições entre histórias são um dos pontos mais interessantes. Quem leu o primeiro romance da autora talvez tenha uma experiência diferente, mais ampliada. São obras que não são totalmente dependentes, mas compartilham personagens e referências. “Piscinas russas” é feito de muitas vozes, com monólogos muito bem construídos, que partem de diferentes perspectivas temporais. Além de Malena, é bem interessante o arco de Teresa e de Aida, além da trajetória de Tom: um garoto bem-nascido, com grande senso de justiça e empatia, e que acaba indo para a luta armada revolucionária. Com o codinome “Iscariotes”, se vê traído por ambos os lados. “Nenhuma existência é possível sem sua dimensão coletiva.”
Se na cronologia dos gêneros textuais, as biografias apareceram antes dos romances de ficção e dos textos historiográficos que desejavam capturar os movimentos de uma época em grande escala, foi por um motivo aparentemente banal e poderoso: são os fios narrativos da subjetividade, embebida no manancial da linguagem e lançada na aventura da construção da própria existência, com suas hesitações, golpes de sorte e fracassos que sustentam a origem de todas as histórias, mesmo daquelas que nos ultrapassam. As histórias daqueles que vieram antes de nós, e daqueles que virão depois, estão todas conectadas por laços às vezes improváveis, com suas falhas, enganos, lacunas e constante abertura para transformação. Esse é o sentido de uma verdadeira história aberta. Tomar a palavra. Sempre por fazer. Como escreve Renata Belmonte: “Estar vivo é sempre da ordem do inacabado”.
MARCOS VINÍCIUS ALMEIDA é escritor, mestre em Literatura e Crítica Literária, autor do romance “Pesadelo tropical” (Aboio, 2023)
“PISCINAS RUSSAS”
De Renata Belmonte
Tusquets
352 páginas
R$ 69,90