Literatura

Gabriela Cabezón Cámara revisita a colonização em 'As meninas do laranjal'

Escritora argentina narra outra perspectiva para a invasão das Américas por meio das peripécias de uma personagem inusitada

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MARIA FERNANDA VOMERO 

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Embora sua vida tenha sido digna de um folhetim, o alferes basco Antonio de Erauso (1592-1650), figura tão picaresca quanto beligerante, de fato existiu. Nasceu mulher, Catalina, com um sobrenome pomposo como cabia a uma filha de nobres, e ainda criança foi internada em um convento em San Sebastián, no País Basco, do qual sua tia era a prioresa. Tornou-se noviça. No entanto, aos 15 anos fugiu, levando algumas moedas, tesouras, linhas e agulhas. Com as roupas transformadas, a partir daquele momento passou a vestir-se e a viver como homem. 

Teve várias atividades, ganhou o mundo. Engajou-se na conquista das Américas em nome da coroa espanhola, participou do extermínio de indígenas – sobretudo, lutando contra o povo mapuche no sul do Chile – e envolveu-se em duelos e assassinatos. Escapou da execução duas vezes. Numa de suas passagens pelo Peru, ao ser preso, confessou-se mulher. De volta à Espanha, virou uma pequena celebridade. Obteve do papa de então o direito de manter tanto o nome quanto as vestes de homem. E o rei espanhol lhe garantiu uma renda vitalícia como militar. Algum tempo depois, a “freira alferes” – como ficou conhecido – retornou à América do Sul. 

Em “As meninas do laranjal” (Companhia das Letras), a escritora argentina Gabriela Cabezón Cámara imagina Antonio já em seu regresso ao Novo Mundo, desta vez como prisioneiro de um grupamento espanhol na selva da região das Missões – ou Misiones, atual província argentina. Ali, ele tem uma epifania. Em seguida, como que por milagre, escapa do enforcamento e atribui o feito à Virgem do Laranjal. 

Em espanhol, o título do livro traz o termo antigo “naranjel”(em vez do usual “naranjal”), remetendo a uma velha canção popular andaluz, “El naranjel”, que narra a viagem da Virgem Maria e do menino Jesus a Belém. Mãe e filho param diante de um laranjal porque o pequeno tem sede. O cego que guarda o local permite que os dois se sirvam de laranjas e, como agradecimento, a Virgem lhe restitui a visão. É na inspiração desse milagre que reside a promessa de gratidão feita por Antonio: buscar um laranjal, em meio à selva, e assim matar a sede das duas meninas indígenas que resgata do quartel espanhol. 

Com uma mirada arguta para as entrelinhas e as margens da história oficial, Gabriela retoma no livro mais recente a estratégia que usou no igualmente inventivo “As aventuras da China Iron”(Moinhos), publicado em 2017 e lançado por aqui em 2021, depois de ter sido finalista do International Booker Prize. A escritora parte de um relato histórico, dado como certo ou legítimo, a fim de “escová-lo a contrapelo”, bem ao modo benjaminiano, e oferecer novas perspectivas – sempre com altas doses de fabulação. 

No romance anterior, o ponto de partida foi o épico “El gaucho Martin Fierro”, de José Hernández, obra do século 19 considerada fundadora da literatura argentina, e a narração coube à esposa adolescente de Fierro, a China Iron do título, que aproveita a prisão do marido para se aventurar pelos pampas argentinos com o cachorrinho Estreya e a escocesa Liz. 

Em “As meninas do laranjal”, que conquistou o Prêmio de Literatura Sor Juana Inés de la Cruz, Gabriela se debruça sobre o incipiente e brutal processo de colonização das Américas, marcado pela soberba europeia diante não só dos povos originários mas também da natureza. A escolha por imaginar as últimas peripécias da “freira alferes”, uma personagem por si só disruptiva e múltipla, permite à autora superar uma visão de mundo apoiada em binarismos e forjada no seio da modernidade. 

“Sou uma mulher, conto coisas que acontecem comigo, que acontecem com outras mulheres e que não acontecem com nenhuma, mas que eu imagino. Isso não é o mesmo que escrever sobre mundos exclusivamente femininos: há homens nos mundos que eu crio, eles só não estão no primeiro plano em que geralmente estão, nos romances e no mundo.” 

Gabriela Cabezón Cámara nascida em 1968 em San Isidro (Argentina) e autora de “Nossa Senhora do Barraco”e “As aventuras de China Iron”,lançados no Brasil pela editora Moinhos,e “As meninas do laranjal”(Companhia das Letras)

A epifania provoca em Antonio uma perspectiva outra: ele não apenas se propõe a cuidar das duas meninas indígenas, às quais se junta um par de macaquinhos também salvo do cativeiro espanhol, como também passa a ver a pujante floresta como um universo vivo em constante devir. Em uma das belas passagens de um livro marcado pela beleza (das imagens, da linguagem), a despeito da violência sempre à espreita, Antonio se lança em um gesto refundador de si mesmo: a escrita. “Isso que escreve é e não é sua vida”, diz o narrador. E mais: “Sente que, enquanto escrever, estarão a salvo”. 

O alferes é interpelado constantemente pelas duas garotinhas, que, com suas perguntas marotas, abrem fendas nas ideias consolidadas não só de Antonio, mas – talvez se possa dizer – do Ocidente. Tudo isso contado com elegância: uma prosa marcada pela cadência, por uma sintaxe trabalhada e pela musicalidade. Os trechos em latim, basco e guarani mesclam-se ao português (ou ao espanhol, no original) de modo fluido e natural. Cada palavra está em seu lugar justo. Aqui cabe também um elogio à tradutora Silvia Massimini Felix, a “voz”da escritora em nosso idioma (além dos dois livros mencionados, ela traduziu um terceiro, “Nossa Senhora do Barraco”, publicado pela Moinhos). 

A linguagem promove uma verdadeira imersão nos sons e nos ritmos da vegetação nativa que recobria a porção sul do continente americano na época da invasão europeia. E entre a longa carta de Antonio, o diálogo do alferes com as meninas, as investidas dos soldados espanhóis e o revide da floresta, ergue-se um mundo que se reinventa e se reescreve – já não com palavras, mas com um gesto contínuo de vida.

MARIA FERNANDA VOMERO é jornalista, performer e doutora em Artes Cênicas (Pedagogia do Teatro) pela Universidade de São Paulo (USP)

Trecho do livro

De “As meninas do laranjal”

– Seus anjos são espíritos metade pássaro, metade homem.

– Mba’érepa?

– Porque têm asas, Michi.

– Anjos mulheres há?

– Os anjos não são nem homens nem mulheres.

– Como você, tchê.

– Eu sou homem, Mitãkuña.

– Nde Japu.

– Sou mulher?

– Nahárini.

– E o que eu sou, então?

– Anjo, tchê. Um urubuzão.

As meninas se riem.

Antonio também: não necessita que ninguém lhe diga o que é. E um anjo não está tão mal.

Volta para a tia.

“AS MENINAS DO LARANJAL”

De Gabriela Cabezón Cámara

Tradução de Silvia Massimini Felix

Companhia das Letras

216 páginas

R$ 89,90

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