Matheus Borges funde viagem, cinema e silêncio com 'Frankito em chamas'
Em mistura fina de humor e melancolia, autor gaúcho narra a história de um roteirista que viaja ao Uruguai para acompanhar a filmagem do primeiro longa
compartilhe
SIGA
BRENO KÜMMEL
ESPECIAL PARA O EM
“Frankito em chamas”, segundo romance de Matheus Borges, narra a viagem de inverno de um roteirista gaúcho a uma praia uruguaia para a filmagem de seu roteiro. O financiamento conquistado exige que parte da história seja filmada em outro país latino-americano; a produção convida o roteirista por gentileza e ele aceita para atender a uma curiosidade vaga ou solução temporária para um tédio da vida urbana, assim como para um alívio à melancolia de um divórcio recente aos trinta e poucos anos. O título cômico e até mesmo esdrúxulo, no entanto, já nos sinaliza que o livro não será apenas outra tessitura modorrenta de vagas tristezas que se tornou linguagem comum na literatura brasileira urbana desde pelo menos o início de nossa decepcionante redemocratização.
Para além do realismo bastante específico do processo de produção cinematográfica, das ferramentas tecnológicas e alguma precariedade material sendo contornada pelo improviso engenhoso dos profissionais, o romance traz uma estrutura episódica em que diferentes personagens circundantes emergem com suas principais histórias de vida, trazendo vida(s) nova(s) à narrativa, que de outra forma se ateria ao cenário comum de um sujeito deslocado em seu meio, vivendo as grandes diferenças entre a escrita de um texto e a laboriosa transformação de um roteiro em filme.
Algumas cenas se destacam, como um ótimo capítulo em que uma fotógrafa fã de punk rock que acompanha uma banda brasileira de heavy metal em turnê no Japão para acabar encontrando algum fugidio sentido pra vida num karaokê do distrito de Shibuya, ou um colega que acompanha diversas cerimônias escatológicas de uma seita urbana, ou também a transfiguração metafórica à beira-mar do título do filme sendo produzido (“Aves migratórias”). O destaque, entretanto, a partir mesmo do título do livro, é Frankito, dublê renomado por sua habilidade de despencar de escadarias.
Sujeito já de alguma idade, o ex-palhaço uruguaio passa quase todo o livro calado, e é tratado pelos personagens com certa reverência de mistério que o romance consegue construir de forma ao mesmo tempo cômica e convincente, e ainda desdobrar para diversos sentidos a respeito das limitações da produção cinematográfica latino-americana, a dificuldade efetivamente econômica de se acessar elementos cinéticos e espetaculares tão fáceis para a indústria audiovisual estadunidense. Pode-se também perceber no personagem e em seu silêncio de aparência mais tranquila que sisuda um contraste distinto com certa verborragia entristecida do mundo contemporâneo, em que às vezes acreditamos que a solução de nossos impasses se dará num próximo salto discursivo, remoendo-se um pouco mais as mesmas questões, quando muitas vezes fazendo isso estamos apenas nos cavando mais fundo dentro do mesmo fosso de sempre.
O romance também narra muito bem certa desterritorialização dos personagens e a melancolia advinda disso. A disponibilidade ampliada de referências culturais tende a produzir não pretensos cidadãos globais e sim pessoas em parte desconectadas de sua própria localidade, sob um anseio constante de não estar nos centros de produção cultural, vivendo como que parcialmente, em eterno desajuste de sua vida mental e o meio que os circunda. É uma questão já longamente discutida, num processo que antecede até mesmo os tempos de hiperconexão da internet ou dos smartphones, mas o trabalho feito pelo escritor dá a ver uma vivacidade renovada para essa perdição parcial: numa cena particularmente sagaz, uma colega mostra ao protagonista sua técnica que descobriu num fórum estadunidense para fumar maconha escondido num quarto de hotel, o narrador só comentando ao final de estarem num país em que a droga já foi legalizada.
Existe uma mistura constante e fina de humor e melancolia por todo o livro, num romance que se lê com fluidez e interesse. Corre há tempos na crítica literária informal o epíteto de “romance de roteirista”para tratar de livros que parecem feitos para serem facilmente adaptados para outra forma narrativa, livros com um foco maior em diálogos e cenas de ação e que diminuem a introspecção, tão difícil de retratar visualmente nesse outro meio de maior potencial de público e lucratividade. Este não é o caso de “Frankito em chamas”, que curiosamente transmite a imagem de que seria um “romance de produtor de filmes”, num controle narrativo muito cuidadoso por todo o texto, de alguém que mira onde quer saltar e pousa precisamente onde mirou. Um romance maduro, que a última frase dá a ver ter sido planejada desde a primeira, e que acende um interesse pelas próximas obras que o autor há de trazer ao público.
BRENO KÜMMEL é romancista, autor de “Sendo ele quem ele era” (Patuá, 2023) e “Uma noção ainda vaga de todo o dano” (Zouk, 2021)
“FRANKITO EM CHAMAS”
De Matheus Borges
Todavia
160 páginas
R$ 76,90
Trecho do livro
“Entrei no avião assolado pela contundente suspeita de que tudo daria errado. Essa impressão, assim me parecia, profetizava que a próxima semana seria um desastre, o fim da minha carreira - se é que eu tinha uma carreira. Houve tempos em que eu costumava sentir isso o tempo todo. Não uma perpétua dúvida a respeito de mim mesmo, mas uma certeza inabalável de que meu trabalho era irrelevante, de que a própria perspectiva de se fazer um filme era um esforço que desaguava em porra nenhuma. Um filme, vejam só, que coisa ridícula.”