A Companhia das Letras lança, no início de dezembro, mais um romance do húngaro László Krasznahorkai, vencedor do Nobel de Literatura de 2025: “O retorno do barão de Wenckheim”. Com 516 páginas, o livro foi publicado na Hungria em 2016 e é descrito pela editora como “uma espécie de desfecho magistral para o universo colocado em marcha em ‘Sátántangó”. “Após décadas de exílio na Argentina, um velho aristocrata arruinado por dívidas de jogo, o barão Béla Wenckheim, regressa à sua cidade natal, uma localidade húngara perdida no mapa e mergulhada em poeira, loucura e ressentimento”, informa o material de divulgação.
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Leia, abaixo, as páginas iniciais do romance. Chama atenção a ausência de pontos para separar as frases. A tradução é de Zsuzsanna Spir.
Advertência
Tira uma maçã da fruteira, a esfrega, levanta à luz para examinála, ver se brilha por todos os lados, em seguida leva a maçã aos lábios, como se quisesse lhe dar uma mordida, mas não morde, em vez disso, afasta a fruta da boca e começa a girála na palma da mão, enquanto lentamente passa a escrutinar as pessoas, de pé, reunidas à sua frente, então deixa cair a mão no colo junto com a maçã, dá um profundo suspiro, inclinase um pouco para trás e depois de um longo silêncio, que não significa absoluta mente nada em lugar nenhum do mundo, diz que poderiam chamálo como quisessem, apesar de ele sugerir, aconselha, que não o chamem de nada, pois poderiam chamar assim ou assado, mas isso não teria sentido algum, já que ele, de forma alguma se sentiria chamado, porque vocês, diz com voz metálica, simplesmente nunca vão conseguir me chamar, por que vocês não sabem lidar com as formas de tratamento, para mim é sufi ciente que consigam lidar com seus instrumentos, porque é disso que va mos tratar daqui pra frente, terão que lidar com seus instrumentos musicais de alguma forma, terão que fazer soar alguma coisa, fazer o instrumento funcionar, ergue o tom de voz e explica, com outras palavras, fazer o instrumento ser ouvido, e para isso acontecer ele tem que saber de tudo, e agora não tocaria no assunto, acrescenta, mas ele naturalmente tem conhecimento total de tudo, e isso implica que eles, ergue a mão que segura a maçã, e, enquanto com quatro dedos mantém a fruta firme na mão, es tica o dedo indicador apontado para eles, que vocês, senhores músicos, devem imediatamente me colocar a par de tudo, não podem ter segredos comigo, isso é essencial, quero saber tudo a toda hora, independentemente do fato — vou repetir — de eu já saber de tudo, de antemão, com o maior detalhamento possível, não podem ocultar nada de mim, têm que relatar os mínimos pormenores, isto é, a partir de agora, têm a mais ilimitada obrigação de relatar, ou seja, desejo a sua confiança, e começa a explicar o que entende por aquilo, no caso, por confiança entre eles, que, na medida do possível, fosse a mais irrestrita, sem o que nunca chegariam a nada juntos, e queria desde o princípio deixar muito claro para eles, queria enfiar na cabeça deles, que quero saber, diz, como e por que retiram o instrumento de seu estojo, e, para simplificar, explica, agora o termo instrumento musical tem que ser considerado no sentido genérico, ou seja, não especifica quem toca violino, quem toca piano, de quem é o bando neon, o contrabaixo ou a guitarra, tudo cabe igualmente dentro do nome instrumento musical, porque o mais importante, diz, quero saber que tipo de crina o naipe usa nos arcos, como e por que afinam seus arcos, quantos arcos sobressalentes carregam no estojo antes do concerto, quero saber, e o tom metálico de sua voz se acentua, quanto tempo o bandoneonista e o pianista treinam antes do concerto, quantos minutos, horas, dias, semanas e anos, o que comeram hoje, e o que querem comer amanhã, se gostam da primavera ou do inverno, do sol ou da sombra, tudo, se é que me en tendem, também o estilo exato da cadeira em que se sentam para ensaiar, e também a estante de partitura, e exatamente em que ângulo a posicionam, quero saber inclusive a respeito do breu, especificamente dos violinistas, onde compram, e por que justo lá, os pensamentos mais tolos que tiveram devido ao pó da resina, ou quando cortam suas unhas, e por que exatamente daquela maneira, e além disso, também gostaria que entendessem, e inclinouse para trás na cadeira, que quando diz que quer saber, e não precisam encarálo com essas caras de assustados, então, isso quer dizer que ele quer conhecer os detalhes aparentemente mais insignificantes, ao passo que eles precisam entender que, em essência, ele pode ser chamado de uma espécie de empresário, só para o caso de alguém perguntar, que ele irá, portanto, observar cada passo deles, observar o menor movimento, e de antemão já sabe perfeitamente qual será aquele menor passo possível, sobre o qual, de qualquer forma, são obrigados a prestar contas, afinal eles estão encurralados entre dois fogos e, em resumo, por um lado, a confiança incondicional e ilimitada e a obrigação de reportar, por sinal indiscutível, mas para eles infinitamente confusa, e, ainda por cima, em meio ao paradoxo insolúvel — e isso, roga muitíssimo, não queiram entender —, que sobre tudo aquilo que lhe for relatado, por obrigação, de antemão ele já sabe tudo e profundamente melhor, então, daqui em diante, é entre dois fogos que esta cooperação contratual ocorre (...).
“O retorno do Barão de Wenckheim”
De László Krasznahorkai
Tradução de Zsuzsanna Spir
Companhia das Letras
512 páginas
R$ 109,90
Nas livrarias a partir de 10 de dezembro
Outros destaques da literatura húngara
Trilogia dos gêmeos
Ágota Kristóf (1935-2011)
Uma das mais importantes escritoras europeias do século 20 nasceu na Hungria, fugiu para a Suíça em 1956, aos 21 anos, onde sobreviveu trabalhando em fábricas. Adotou então a língua francesa, e foi nela que mais tarde escreveu romances, contos e peças de teatro. Foi agraciada com importantes premiações ao longo de sua carreira e inspirou grandes nomes da intelectualidade e das artes com a sua obra. A “Trilogia dos gêmeos”, publicada no Brasil pela Dublinense em 2024 com tradução de Diego Grando, é considerada sua obra-prima e é formada pelos livros “O grande caderno”, “A prova” e “A terceira mentira”. “Ágota Kristóf é uma escritora fundamental para mim. Ela nos treina, com a sua linguagem implacável e cristalina, a olhar para tudo, mesmo para o mais terrível, porque, nesse olhar nu, nessa recusa de desviar o olhar, acredito que se encontra, para ela, a chave para a compaixão suprema”, afirmou a escritora mexicana Fernanda Melchor.
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“As Brasas”
Sándor Márai (1900-1989)
Nascido na cidade de Kassa (hoje Kosice, na Eslováquia). Poeta, dramaturgo, correspondente em Paris do Frankfurt Zeitung na época da República de Weimar. Autor de 46 livros, na maioria romances, que tiveram enorme sucesso na Hungria entre as duas guerras mundiais. O de maior sucesso, sobre o embate de dois amigos, é “As brasas”, traduzido por Rosa Freire D’Aguiar e editado pela Companhia das Letras, que lançou outros títulos importantes da obra do escritor como “De verdade”, “Jogo de cena em Bolzano” e “Veredicto em Canudos”, que escreveu após a leitura da tradução inglesa de “Os sertões”, de Euclides da Cunha, e foi publicado em 1970. Inconformado com o regime comunista de seu país, Marai se exilou e morou na Suíça, Itália e França. Em 1979, fixou-se em San Diego (EUA), onde se matou com um tiro de revólver dez anos depois, às vésperas do fim do comunismo europeu.
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“A porta”
Magda Szabó (1917-2007)
Nascida na cidade de Debrecen, cresceu em família protestante, durante o período de ocupação alemã e soviética do país, estudou latim e húngaro na Universidade da sua cidade natal, trabalhou como professora, publicou dois livros de poesia e foi agraciada com o prêmio Baumgarten, em 1949. Atingiu merecida projeção internacional com a publicação do romance “A porta” (1987), lançado no Brasil pela Intrínseca em 2021, com tradução de Edith Elek. A sua obra está traduzida em mais de 30 idiomas e reconhecida com inúmeros prêmios internacionais.
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“A Bíblia”
Péter Nádas (1942)
Considerado um dos mais importantes autores húngaros ainda em atividade, publicou, entre outros títulos, “A book of memories”, “The end of a family story” e “Love”. Tem um pequeno-grande livro lançado no Brasil: “A Bíblia”, com 113 páginas. Publicado pela Todavia em 2023, com tradução de Paulo Schuller, narra a história de um pré-adolescente que vive com os pais e os avós maternos na Hungria socialista (1949 a 1956). “Nenhum outro escritor europeu da atualidade lidou de modo tão eloquente com as obrigações e os enigmas morais da memória, privada e coletiva”, afirmou, à época, o The New York Times.
