LITERATURA

'Zoo': o amor impossível que Chklóvski transformou em revolução literária

Um dos fundadores da teoria formalista russa no início do século 20 desmonta os pilares do romance epistolar a partir do amor não correspondido

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LIGIA GONÇALVES DINIZ

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A paixão interditada Um dos fundadores da teoria formalista russa no início do século 20,Viktor Chklóvski desmonta os pilares do romance epistolar ao escrever um livro,a partir do amor não correspondido pela escritora Elsa Triolet, com cartas que incluem reflexões metanarrativas,ensaísmo teórico e comentários sobre o exílio

Quase ao final de “Zoo, ou cartas não de amor”, Viktor Chklóvski (1893-1984) escreve que só resta à arte de seu tempo “romper as ligações”, que haviam se tornado, desde a virada do século, “um tecido de cicatrizes”. Na página seguinte, define o livro que escreve como “uma tentativa de sair dos limites do romance comum”. Mais de cem anos depois – a primeira edição é de 1923 –, a obra ainda causa estranhamento. 

Chklóvski ficaria feliz com essa afirmação, embora seja improvável que concordasse. “Do mesmo modo que a vaca devora o pasto, também os temas literários se devoram, os procedimentos amadurecem e viram pó”, escreve ele. A afirmação não causa espanto: o autor é conhecido como um dos fundadores da teoria formalista russa, movimento que, inspirado pelo futurismo, redirecionou o olhar da crítica do conteúdo para a forma literária, valorizando sobretudo as inovações da linguagem. 

É preciso destacar, contudo, que a obra de Chklóvski é bem mais interessante do que a versão caricata do formalismo que se arraigou no senso comum, a de uma visão fria e apolítica da literatura. O autor nunca afirmou, por exemplo, que o conteúdo não importa. Em sua visão – ainda provocadora –, é precisamente ao renovar a forma que podemos também dirigir olhos frescos ao mundo que ela dá a ver. 

No caso de “Zoo”, o autor russo recupera o potencial de desautomatização (outra noção cara a ele) do romance epistolar amoroso – a referência é a “Julie”de Rousseau – ao fazê-lo se compor de cartas que incluem reflexões metanarrativas, ensaísmo teórico e comentários sobre o exílio, experiência esta que dá unidade a esse “tecido de cicatrizes”. 

O mote de “Zoo”é o amor não correspondido de Chklóvski por Ália, como ele chama Elsa Triolet, que se tornaria uma escritora importante na França, mas que, por ora, era uma jovem russa expatriada em Berlim, assim como seu pretendente. Cortejada por ele, Ália consente na amizade, desde que não se façam declarações apaixonadas. Ele responde: “Você me deu dois afazeres: 1) não telefonar para você, 2) não me encontrar com você. E agora sou um homem ocupado”.

Está lançada a interdição afetiva, e Chklóvski rapidamente a transforma em desafio literário. Apenas o primeiro par de cartas dos dois é datado, o que sugere que a partir daí corremos os riscos da ficção. A graça então é descobrir não o que ali há de biográfico, mas o que de inédito se pode fazer com o velho formato. 

Há passagens contundentes sobre o amor e a rejeição, mas o substrato do livro é a saudade da terra natal, que transforma o texto em um manifesto de fidelidade à Rússia, de onde Chklóvski havia fugido a contragosto no ano do julgamento dos socialistas-revolucionários, grupo moderado contrário aos vencedores bolcheviques e do qual o autor havia feito parte. Esses eventos são narrados em outro livro do russo, “Viagem sentimental”, lançado aqui em 2018.

DIÁSPORA RUSSA EM BERLIM 

Nestas “Cartas não de amor”, é a vida da diáspora intelectual russa em Berlim que garante a dimensão memorialística, na qual se destacam comentários tocantes a respeito de poetas como Boris Pasternak, Andrei Biéli e Marina Tsvetáieva, entre muitos outros que povoam as páginas e as fartas notas de rodapé do tradutor Vadim Nikitin, que são uma aula à parte. 

Também aparece ali Vladimir Maiakóvski, que, no mesmo ano de 1923, dedicou o longo e maravilhoso poema “Sobre isto” à irmã de Elsa, Lili Brik. As obras se aproximam pela ligação familiar, a dor da rejeição e a angústia diante do telefone que não toca – além de seus autores revelarem um quê de stalkers –, mas manifestam afetos algo conflitantes quanto à Rússia pós-revolucionária. 

Em “Zoo”, Ália é objeto de devoção, e a saudade da Rússia assombra Chkóvski, mas também competem por sua atenção os objetos e o ritmo modernos. Boa parte do prazer da leitora é o de vivenciar a perplexidade de um sujeito tão empolgado quanto atônito diante de uma vida cada vez mais veloz e cujo maior símbolo de aceleração é o automóvel. É uma lição íntima de mentalidade modernista. 

Nos momentos mais belos, as paixões se confundem. Chkóvsky acusa em Ália uma leveza excessiva, dizendo-a “uma pessoa por demais pan-europeia”, e completa, em uma de muitas analogias romântico-tecnológicas: “Se um automóvel não pesasse nada, ele não poderia se locomover”. A amada, ao mesmo tempo que acumula as ambivalências da transformação de mulher em musa – adorada e estigmatizada na mesma medida – se esvazia também ao ser convertida em uma metáfora da distância de casa: “No estrangeiro, eu precisava ser estraçalhado, e encontrei um amor que estraçalha”. 

O livro se completa com uma introdução de Richard Seldon e um posfácio de Letícia Mei, que devolve a Elsa Triolet a subjetividade distorcida pelo romance. Há que destacar, porém, que, mais do que uma misoginia atávica, Chklóvski revela, de modo autoconsciente, a sobreposição da intenção poética à romântica. O credo que ele reza não é o do amor, mas o da literatura: “Não troco meu ofício de escritor, o meu livre caminho de telhado em telhado, por um traje europeu, por botas escovadas, por altas divisas, nem mesmo por Ália”.

“ZOO, OU CARTAS NÃO DE AMOR”
De Viktor Chklóvski
Tradução de Vadim Nikitin
Coleção Leste
Editora 34
192 páginas
R$ 65

LIGIA GONÇALVES DINIZ é professora de teoria da literatura e literatura comparada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e vencedora do Prêmio Biblioteca Nacional, na categoria Ensaio Literário, com “O homem não existe: masculinidade, desejo e ficção” (Zahar)

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