Primeira leitura: 'Linha de neve', de Luís Giffoni
Traições, viagens e desejo de vingança moldam novo livro do escritor mineiro, com lançamento no dia 13 de dezembro na AML
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(...) Percorreu os Andes uma vez mais, avançou até os picos ao fundo. Sim, tridentes de pedra cutucavam o céu, buscavam atingir os anjos distraídos que cavalgavam os cirros. Nenhum se feria, nenhum caía. Arcanjos e santos tampouco. Tanto melhor. Tanto melhor viver sem fantasia, sem mito, sem deus. O ser humano sempre se virou sozinho, sozinho surgiu, cresceu, sozinho desaparecerá. Como qualquer outra espécie. Nascido e diluído na natureza, do pó ao pó. Pó como o de qualquer mamífero. Bom adubo. Um dia ele devolveria ao solo tudo o que tomara e juntara em seu corpo comprido. Mirou os dedos vazando das meias furadas. Até as unhas devolveria. Devolveria até o derradeiro átomo da sujeira encravada no mindinho.
Sentiu que os quatro elementos atravessavam seu corpo. O ar predominou, ofereceu-lhe leveza. Em seguida, tornou-o invisível. A natureza era seu mantra transcendental. Quando se interpenetravam, ele desaparecia. Incorporava-se à paisagem. Sumia dentro do mundo. Virava felicidade. No mesmo instante, estava de volta. Felicidades duram pouco, por isso valem tanto. Calculou as coincidências necessárias para produzir aquele momento. Carecia do Sol e da Terra a uma distância conveniente, que nem congelasse ou evaporasse a água, carecia de estabilidade do Sol por bilhões de anos para gerar e sustentar a vida, carecia da Lua e suas marés, carecia das placas tectônicas a se chocarem através das eras, até erguerem os Andes, carecia do magma a escapar pelos vulcões e fendas, e formar os continentes, carecia da atmosfera que refletia certas cores e absorvia outras, da neve que rodopiava no cume, da quase ausência de nuvens, carecia de um asteroide caindo na Terra para extinguir os dinossauros predadores de mamíferos e, com o tempo, permitir a evolução humana, carecia da sorte dos primeiros sapiens que sobreviveram à fome nas savanas da África. O que mais? Carecia de sua presença ali, naquele instante, voltando de Santa Cruz de la Sierra naquela janela virada para o Leste, carecia do casamento do horário do ônibus com o amanhecer, de sua capacidade de enxergar, de se encantar, de perseguir o detalhe. Carecia de consciência. Carecia de tanta coisa que a existência parecia um absurdo. Era, de fato, um absurdo. No mínimo, uma remota possibilidade. Quantas manhãs haviam se consumido sem uma pessoa para testemunhá-las, quantas virão após o último moicano? O mundo era uma sucessão de acasos, tantos e tão desconexos que a maioria desistia de entendê-los e, para aplacar o desespero, preferia o conforto da superstição, da crendice, dos espíritos, da metafísica, do delírio, do mistério, do wishful thinking. Do barro do mito nasce a superstição, da costela do mistério nasce a crendice. Ou vice-versa? Mesmo a ciência gera seu barro e sua costela. O ser humano vive eternamente encurralado, sem respostas. Masturbação mental para os séculos dos séculos. A circularidade do pensamento não tem cura. Quanto mais responde, mais indaga. Quantos anjos cabem na ponta de um alfinete? O que fazia o Criador antes do Gênese? O que existia antes do Big Bang? Quando nasceu o tempo? O Universo é quase totalmente energia escura? Porra, o que é energia escura? Sim, a ciência também acredita. Como acreditava a Inquisição, a Santa Inquisição.
Bastava considerar o futuro — ele prosseguiu, sem perder os Andes de vista —, e a ideia de um ser onipotente ruía. Um futuro sempre acontece, não se sabe que eventos o produzirão, porém um futuro virá. Mesmo que a espécie humana tenha desaparecido, mesmo que não haja observadores conscientes, assim como houve um passado antes do sapiens, antes mesmo dos australopitecos ou das bactérias. O passado remoto é como Paris: a maioria das pessoas não está lá, nunca a viu, porém sabe que Paris existe. Sem adoradores, sem acólitos, sem servos, sem cobradores, deus algum sobrevive. A quem faria exigências, imporia regras, tolheria a liberdade? A baratas, formigas, fungos, coronavírus, ao calor de uma supernova, aos átomos, ao silêncio do cosmo? Quem liga para Ra, tão poderoso no antigo Egito, adorado pelos faraós durante milhares de anos? Para quem o oráculo de Delfos profetiza hoje em dia? Quem reza para Thor, quem vai para Walhalla, depois que os vikings desapareceram? Quem entrega oferendas para o sanguinário Huitzilopochtli, por quem milhares de astecas pereceram? E para Ishtar? E Júpiter? Impiedade a quais deuses matou Sócrates? De Baco só ficaram as bacanais. Prazerosas, por sinal. Quem experimentou sabe. Ele sabia e tinha curtido muitas em Ipanema.
Uma nuvenzinha em espiral o devolveu para a ponta do Illimani. Neve rodopiante, exígua, a miudeza que faltava para completar a magia da manhã. Oxalá pudesse gravar a imagem, pixel por pixel, bite por bite, para revivê-la dali a décadas, sem perda da qualidade do arquivo. Imaginou um spray mental que preservasse aquele momento nos centros de memória no cérebro. Solução idiota. Como abriria a cabeça para borrifá-la com o produto e depois a fecharia? Quem sabe um curto-circuito no hipocampo congelaria o cenário para o resto da vida? Ele resistiria a tanta informação? Quem sabe algum setor pouco exigido dos miolos possuiria neurônios suficientes para a tarefa? Talvez fosse mais viável uma neurofotografia armazenada num megapendrive — ou guardada em outro artifício que o futuro inventará. Como os técnicos a traduziriam para a visualização geral? A natureza é um megapendrive cheio de novidade à espera de leitores; deus é um pendrive vazio que os leitores vão, aos poucos, empanturrando com teologias, tautologias e delírios. Pendrives, quanto tempo resistirão ao avanço tecnológico, se já não forem passado? As inteligências artificiais os aposentam. Talvez fosse melhor, desde já, considerar o computador quântico interagindo com a mente, nuvem sem limite para estocar informação. A nuvem seria o deus do futuro, onisciente, onipresente e onipotente? A vingança tardia dos nefelibatas. Quem ri por último.
O LIVRO PELO AUTOR
“O romance ‘Linha de neve’ acompanha a busca de prazer e aventura por um casal carioca de vinte e poucos anos, Michel e Soraya, ao longo da Cordilheira dos Andes, da Venezuela à Patagônia. Estão abertos a todos os experimentos: buscam Macondos onde a realidade e o fantástico convivem, exploram locais cuja beleza os fascina, frequentam suítes presidenciais de hotéis cinco estrelas ou hosteis de mochileiros, transam ao relento, abaixo de zero, usam drogas, integram-se aos povos da região. Michel é rico, culto, inteligente, mora na Vieira Souto, estudou no Brasil e no exterior. Soraya esbanja beleza, esmera-se na sedução, recita Petrarca desde criança, frequentou as melhores escolas, leu muito, também mora em Ipanema. Conheceram-se enquanto frequentavam a Faculdade de Filosofia do Largo São Francisco, no Rio de Janeiro. Na Colômbia, Michel trai Soraya, arrepende-se, mas volta a trai-la no Equador, ela aceita as amantes em nome do prazer que não pode ser refreado, até se envolve com algumas. Após sofrerem um assalto, enquanto escalam uma montanha com mais de seis mil metros de altitude, na Bolívia, seu amor é posto em xeque: ela trai o companheiro. Michel suportaria o ciúme? A montanha nevada seria o local perfeito para a vingança – ou o ar rarefeito e a beleza dos Andes revelam que a vida existe além da decepção amorosa?
SOBRE O AUTOR
Nascido em Baependi em 1949, Luís Giffoni é o ocupante da cadeira 33 da Academia Mineira de Letras. Com 27 livros publicados, ele define o novo romance, “Linha de neve”, a ser lançado em 13 de dezembro: “Embora percorra vários países, ‘Linha de neve’ não se afasta do Brasil. Nas entrelinhas, traça um panorama de nossa atualidade. Um panorama com o peso de nossas contradições e impasses.”
“LINHA DE NEVE”
Luís Giffoni
Sinete Editora
296 páginas
R$ 70
Já pode ser encomendado no site da editora. Lançamento no dia 13 de dezembro na Academia Mineira de Letras (AML)