Uma mãe escreve sobre sua vida e a das pessoas ao redor para compreender “o demônio que proíbe o encontro”. Ler a história narrada por Lina é acompanhar o tortuoso caminho entre culpas e purgações e confrontar uma pergunta incômoda: o que significa desistir de um filho? Dessa premissa nasce “Dança de enganos”, o esperado terceiro volume da trilogia “O lugar mais sombrio”, de Milton Hatoum. 

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As mais de três décadas de atuação do escritor – desde a publicação em 1989 de “Relato de um certo Oriente”, o precioso livro de estreia – abarcam a trilogia formada pelo romance “A noite da espera” (2017), seguido de “Pontos de fuga” (2019), narrativas que entrelaçam arte, política e ideologia, em que o memorialismo hatoumiano dá a ver os sonhos e desilusões do protagonista Martim. 

“A noite da espera” apresenta os cinco anos do jovem em Brasília, sua vida na escola e o ingresso em um grupo de teatro amador, o trauma com a separação dos pais, o engenheiro Rodolfo e a professora de francês Lina, e a formação política nos anos 1960, que inclui a paixão pela atriz Dinah. Em “Pontos de fuga” acompanhamos a ida de Martim para São Paulo, o ingresso na faculdade de Arquitetura da USP e os ideais políticos partilhados com estudantes e companheiros de luta contra a ditadura.

Nos dois livros, paira a falta de contato com Lina. Ainda que surjam pistas, o ponto de vista materno permanece como enigma por mais de 500 páginas, e “Dança de enganos” chega para desenrolar esse novelo. O desenho completo do tríptico – espera, fuga e dança – revela a insistência de substantivos nos títulos das obras, como se a linguagem mirasse uma dimensão essencial na tarefa de elaborar lutos individuais e dar nome ao trauma coletivo da ditadura. 

Nessa dança final, os textos dialogam, iluminando ou obscurecendo episódios narrados nos demais volumes: cartas perdidas se misturam a anotações, bilhetes, gravações e depoimentos, revelando uma trama que se movimenta em cidades diversas, entre elas Ouro Preto, Brasília, Campinas e Paris, onde Martim se encontra exilado.

Em meio a passeatas, reuniões, panfletagens e missões políticas, alguns se rendem, outros partem, muitos desaparecem sob as ações dos militares. Para quem permanece vivo, sobram a afasia, a gagueira e o medo. Mas também o desejo de escrever, pintar e atuar. Na tentativa de compreender o passado que a separa do filho, Lina organiza, transcreve e reescreve as falas alheias, em uma espécie de gesto arquivístico. Mas a tentativa de montar o quebra-cabeças resulta sempre falha, já que acessar uma verdade última desse labirinto é tarefa fadada ao fracasso. Ao chegar em suas mãos um relato memorialístico escrito pelo filho distante, a dúvida toma conta: “Será que as cartas e os diários dos amigos do Martim não foram reescritos por ele, ‘ladrão de memórias alheias’?” 

Lina sofre pela incapacidade de decifrar o “calhamaço” porque talvez seja insuportável alcançar o miolo do que Martim diz. Equívocos, lapsos e imprecisões bailam no texto, daí a relevância da letra ilegível no verso de uma carta. O avesso da linguagem, “arame farpado das palavras”, está presente tanto no abismo das relações amorosas quanto no que fica marcado pelas sombras da ditadura e suas sequelas. 

Para compor o movimento desse tabuleiro é fundamental a criação de figuras femininas de peso, ponto forte da escrita hatoumiana, como revelam as matriarcas libanesas Emilie, de “Relato de um certo Oriente” e Zana, de “Dois irmãos”; e as mulheres de origem indígena Anastácia Socorro e Domingas, que as servem. No fecho da trilogia, além do protagonismo de Lina, se destaca a portuguesa Ondina, avó materna de Martim, cuja dureza contrasta com o tratamento brando concedido ao filho Dácio. Preterida, Lina é vista pela mãe como filha rameira por abandonar o casamento infeliz com Rodolfo.

 Apoiador do regime militar, ele é alguém que lê às escondidas cartas destinadas ao filho, escuta conversas atrás da porta, espia, bisbilhota, tomado pelos ciúmes da mulher que agora vive com o pintor Leonardo. Dedicado a compor um painel de sete telas intitulado “Galeria dos homens da morte”, o artista pinta a violência dos militares e busca dar forma a pesadelos recorrentes, do mesmo modo que Martim insiste em escrever suas memórias. Já Lina sofre de um lado com a cobrança de Rodolfo, Leonardo e Martim, e de outro, com o julgamento moral de Ondina. No vórtice familiar que engole a todos, ela se debate em dúvidas dolorosas. 

Em consonância com os primeiros romances do autor, o erotismo no texto surge em relações que borram os limites entre o afeto familiar e o amor sensual – um amor materno em que chamegos excessivos, carícias e olhares ultrapassam as fronteiras entre o estranho e o familiar. Algumas dessas pulsões libidinais em desordem permanecem no âmbito do não-dito; outras são visíveis a olho nu: “O amor do Martim pela mãe não é só o sentimento de um filho. O sofrimento dele é de órfão e viúvo”, percebe a namorada Dinah, em “Pontos de fuga”. Na roda-viva de enganos, a figura de Ondina forma com o filho Dácio uma variante do par amoroso constituído por Lina e Martim. Perigo à vista.

O fraseado elegante de Hatoum vai nomeando de vários modos a ideia de risco e ameaça, tanto no clima político de uma geração que não se rende às violências do Estado, quanto no círculo da intimidade, entre os interditos das quatro paredes da casa. A despeito de muitos diálogos e do que seria uma troca de pontos de vista, permanece a atmosfera de descompasso entre uma mãe banida e um filho em eterno exílio.

 Em uma cena passada em Ouro Preto, Lina sai do porão da casa e vai ao jardim respirar. Entre as plantas, se depara com o desabrochar de uma flor da bananeira e enxerga nela um coração fatiado. Muitas vezes aquele “demônio que proíbe o encontro” e nos aparta uns dos outros está mesmo do lado de fora, entre o autoritarismo do passado e sua persistência no presente. Mas, por vezes, a temida figura diabólica mora bem ali dentro, e resulta impossível emendar os laços que a brutalidade e os afetos separaram. 

Trecho

Quando disse a Leo que a distância esfria a amizade, o amor, tudo, ele perguntou: “Depois de tantos anos longe do teu filho, você ainda sente o mesmo amor por ele? O amor de quando ele era criança e vivia contigo?”. Leonardo se assustou com meu grito de cala a boca; mas o berro indignado não era dirigido a mim mesma? Martim estava cada vez mais longe... Por que deixei isso acontecer? Queria mesmo me separar do meu filho? Às vezes botava culpa no Dácio e no Leonardo com veemência. Por que eu agia assim? Talvez a gente acuse os outros para sentir menos remorso dos nossos próprios atos. 

“Dança de enganos”

De Milton Hatoum

Companhia das Letras

256 páginas

R$ 79,90

Lançamento em BH na próxima quarta-feira (29/10), às 19h, no Centro Cultural Unimed-BH Minas, em edição especial do projeto “Letra em cena”

Curadoria de José Eduardo Gonçalves. Leitura de textos por Odilon Esteves. Entrada franca, mediante retirada de ingressos via Sympla

STEFANIA CHIARELLI é professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense e autora de “Vidas em trânsito – as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum”. 



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