“Abrir-se o abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul (fragmento)” 

(De “Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul”)

12. eu existo com este corpo todo, plantado no cereal

onde o tempo esqueceu sua marca de ferro em brasa, que 

por muitos anos permanecerá gravada na pedra onde 

entalhei minha sombra, onde as sementes secaram o 

último sumo que existia nos olhos, mesmo de azul. agora 

eu me sinto o mais deserto de todos, porque o medo me 

impede de estender as mãos até o rio de teus olhos e dizer 

de corpo inteiro e de testemunho o que se forma dessa 

descoberta. só me resta o rosto marcado, meus braços 

foram retorcidos pelo vento. 



*

Leia: Curso e reedição celebram a poesia de Adão Ventura

“Clima”

(Do livro “Costura de nuvens”)

Talvez 

você possa ser 

até um arco-íris 

ou uma fresta 

    de luz.

Que vare 

de ponta a ponta 

meu coração 

e me acorde 

para mais 

    uma tempestade.

*

“O A do Z”

(Da seção “Outros poemas”, inéditos em livro)

Para Riva Szapiro

você a única das sobreviventes de atlântida. de seus membros os leões extraíram fábulas de libélulas de várias vozes. seu corpo foi levado ao rio, e despojado, e lavado de todas as mágoas e outros acessórios inúteis. 

— na estrada, cavalos automáticos eram enxotados pelo vento enquanto plantavam nas nuvens seus cascos falsificadores de espumas. 

as pessoas instaladas confortavelmente em elegantes fornos, tiveram seus corpos transformados em suntuosos reinos e metais. 

voltemos os nossos olhos às montanhas de solfejos onde 

os reis consultam pavões e lanças perfumadas. 

assim assistiremos, sem nenhum temor, à ruptura do olho 

d’água nos porões dourados do vestido verde. 

*

“Teares de Berilo – Roça grande”

(De “Jequitinhonha”)

Teça o seu corpo 

no tear mais simples

aquele que lhe resta

pelo suor e origem.

Teça o seu corpo

ainda que a música

lhe desagrade.

Teça o seu corpo

no tear mais simples

– aquele que lhe resta

pelo suor e origem.

*

“Preto de alma branca: ligeiras conceituações”

(De “A cor da pele”)

o preto de alma branca

e seu saco de capacho.

o preto de alma branca

e seus culhões de cachorro.

o preto de alma branca

e sua cor de camaleão.

o preto de alma branca

e o seu sujar na entrada.

o preto de alma branca

e o seu cagar na saída.

o preto de alma branca

e o seu sangue de barata.

cada vez mais distante

do corpo da Grande Mãe-África.

*

“Origem”

(De “Texturaafro”)



Vestir a camisa

de um poeta negro

– espetar seu coração

com uma fina

ponta de faca 

– dessas antigas,

marca Curvelo,

em aço sem corte,

feito para a morte

– E acomodar

no exíguo espaço

de uma bainha

sua dor-senzala.

Sobre o autor

Adão Ventura nasceu em 1939, em Santo Antônio do Itambé, à época distrito do Serro (MG), e morreu em Belo Horizonte em 2004. Graduado em direito pela UFMG, trabalhou na redação do Suplemento Literário de Minas Gerais, foi professor convidado de literatura brasileira na Universidade do Novo México (1973) e presidente da Fundação Palmares (1990-1994). “A cor da pele: poesia reunida”, com organização de Fabrício Marques, inclui 37 poemas esparsos, reunidos pela primeira vez em livro. 

Sobre a obra do autor

(Trecho do posfácio assinado por Fabrício Marques, também autor desta seleção de poemas)

“Em seis livros (acrescidos de uma reedição ampliada e uma antologia póstuma, com alguns poemas inéditos), Adão Ventura construiu uma obra múltipla e aberta, a partir de três vertentes: a primeira, mais experimental, dialogando com as vanguardas do século passado; a segunda, uma face engajada com as questões sociais e raciais; e uma terceira, em que expressa uma visão lírica das manifestações do sagrado em Minas. Na tese ‘O Atlântico em movimento: travessia, trânsito e transferência de signos entre África e Brasil na poesia contemporânea em língua portuguesa’, Prisca Agustoni afirma que é difícil tentar encontrar vasos comunicantes entre essas três vertentes poéticas, já que elas não se entrecruzam explicitamente. “No entanto”, diz ela, “a análise da poética de Ventura demonstra que tais faces se constituem como desdobramentos enriquecedores, que tornam o solo literário forjado pelo autor ainda mais escorregadio e móvel”. Para a pesquisadora, “tal como ocorria no processo de escavação em busca do ouro, o poeta também abre diferentes túneis de acesso ao seu universo criativo”.

Para usar outra metáfora que evoca a época colonial da mineração, percorrer esses túneis é agir como um faiscador – feito o escravizado Isidoro, um dos personagens históricos citados em ‘Texturaafro’ –, catando e extraindo ouro na ganga das minas e nos depósitos de aluvião da linguagem poética, no trabalho com suas raízes africanas, com a tradição cultural afromineira e com a condição aviltante do negro no Brasil-Colônia e depois.”

“A cor da pele: poesia reunida”

De Adão Ventura

Organização e posfácio de Fabrício Marques

Círculo de Poemas/Editora Fósforo

320 páginas

R$ 94,90 (e-book: R$ 75,90)

Caixa para assinantes enviada em outubro. Nas livrarias a partir da primeira semana de novembro.

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