Leia trecho de ensaio biográfico de João Barile sobre Silviano Santiago
Obra revela a vida, prêmios e trajetória acadêmica de um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea
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Sobreviver
Enquanto caminhava de volta para o hotel, torcia para que Silviano cumprisse a promessa. E que, no próximo encontro, começasse a falar. Durante o caminho, na avenida entupida de turistas eufóricos, me lembrei dos anos da pandemia. Dos nossos telefonemas durante aqueles meses do pesadelo da covid-19. No início, o isolamento não o abateu. Pelo contrário. Parecia até animado. “Agora finalmente terei mais tempo: vou poder me concentrar mais e escrever.” O escritor colhia os frutos de “Machado”. O livro experimentava um grande sucesso de público e tinha sido o vencedor do Prêmio Jabuti de melhor romance em 2017. Um feito, se considerarmos que o texto é uma refinada análise dos últimos anos de vida de Machado de Assis. “Machado” venderia tão bem quanto “Em liberdade”, até hoje seu romance de maior sucesso. Na obra, a análise biográfica, que anda meio fora de moda entre os machadianos, é retomada. Nadando contra a corrente das leituras com foco sociológico da obra de Machado de Assis, uma quase unanimidade nas universidades brasileiras nos últimos 50 anos, Silviano escreve um comovente retrato de um escritor velho, fragilizado e solitário. “Depois de ‘Mil rosas roubadas’, escrevi mais um romance de literatura da sobrevivência”, me disse na época do lançamento. “Se Flaubert e Joyce escreveram romances de formação, retratos de artistas quando jovens, com esses dois livros quero mostrar o artista quando velho”, repetia sempre. Entusiasmado com o sucesso do livro, ele já fazia planos para o próximo trabalho: as memórias. O acerto de contas com o passado. Desde meados dos anos 1970, ele já vinha ensaiando, criando coragem, para escrever sobre sua vida. Naquela década, publicaria, pela biblioteca do Institute of Latin American Studies, da Universidade do Texas, um conjunto de poemas chamado Growing Up During the War in an Overseas Province (Crescendo durante a guerra numa província ultramarina), que seria publicado em 1978 no Brasil. Silviano ainda sofria influência do concretismo: basta pensarmos num livro como “Salto”, publicado alguns anos antes, em 1970. Seu interesse em relacionar literatura, história e memória estava apenas começando. A princípio, suas memórias seriam divididas em três volumes: Formiga, Belo Horizonte e Rio-Paris. Em setembro de 2019, já tinha pronta uma versão inicial da primeira parte. Sempre preocupado com a veracidade das informações, para a elaboração do livro contratou um pesquisador, com a tarefa de checar tudo o que escrevera. Além disso, ele se envolveria ativamente no projeto gráfico do livro, que trazia na capa um desenho de Jean Cocteau, uma de suas maiores paixões e obsessões, e ilustrações do inglês Sam Hart. “Menino sem passado” chegou às livrarias em janeiro de 2021. Depois do grande sucesso de “Machado”, criou-se enorme expectativa sobre esse novo livro. Lançado no auge da pandemia, em um ambiente altamente politizado, o livro não teria a mesma recepção do anterior. A fria acolhida minou o ânimo de Silviano para o projeto. Com o passar dos meses, suas referências aos outros dois volumes das memórias começaram a diminuir. O autor – que sempre faz questão de dizer que na velhice suas maiores felicidades vêm mesmo é da literatura e que, portanto, só lê e escreve aquilo que deseja – começava a mudar de ideia. “Faz sentido continuar? Acho que não. Vou retomar uns escritos sobre Machado e Proust que ainda quero fazer. Sabe de uma coisa? Meu desejo de recordação acabou”, me disse no final de 2021. Andando sozinho pela Nossa Senhora de Copacabana em direção ao hotel, todas aquelas nossas chamadas telefônicas me vinham de novo à lembrança. E eu só torcia para que Silviano não tivesse perdido sua vontade de lembrar. E que, finalmente, começasse a falar.
Sobre o autor e o livro
João Pombo Barile é jornalista e diretor do Suplemento Literário de Minas Gerais. Desde 2011, dirige o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura. Em “Presente do acaso”, por meio de diversas sessões de entrevista e reportagens, Barile faz o perfil biográfico de um dos maiores nomes da literatura brasileira: Silviano Santiago. Nascido em Formiga em 1936, Silviano tem na sua obra romances, contos, ensaios literários e culturais. Doutor em letras pela Sorbonne, começou a carreira lecionando nas melhores universidades dos EUA. Transferiu-se posteriormente para a PUC-Rio e é, hoje, professor emérito da UFF. Por seis vezes foi vencedor do prêmio Jabuti. Pelo conjunto da produção literária, recebeu o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras e o José Donoso, do Chile. Em 2022, o autor venceu o prêmio Camões de literatura, maior honraria em língua portuguesa. É membro eleito da Academia Mineira de Letras e mora no Rio de Janeiro.
“Ao narrar a travessia de Silviano por cidades, décadas e linguagens, ‘Presente do acaso’ não congela o personagem num passado ilustre: lê sua obra sob o ângulo do agora. A vida que vira literatura devolve o golpe e se torna matéria de investigação; a literatura, por sua vez, reordena a vida e a exibe em suas contradições. É nesse trânsito, entre lembrança e invenção, arquivo e gesto, que a biografia encontra seu fôlego jornalístico, preservando a alta voltagem de um “duelo criativo” que resulta, paradoxalmente, no retrato mais inteiro de Silviano Santiago”, informa o material de divulgação do livro, que terá lançamentos no Rio e em Belo Horizonte no início de novembro.
“Presente do acaso: um ensaio biográfico sobre Silviano Santiago”
De João Barile
384 páginas
Autêntica
R$ 94,90
Lançamentos no dia 04/11 (terça-feira, às 19h), na Livraria da Travessa de Ipanema (Rua Visconde de Pirajá, 572), no Rio de Janeiro, com autógrafos de João Barile e Silviano Santiago, e no dia 08/11 (sábado, às 10h), na Academia Mineira de Letras, com uma conversa entre Barile, Silviano e o professor e ensaísta Wander Melo Miranda.