'Poesia reunida' consagra Maria do Carmo Ferreira
Finalista do Jabuti e vencedor do Prêmio da Academia Mineira de Letras, caixa com três volumes reúne cinco décadas de criação poética da autora de Cataguases
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Rafael Fava Belúzio
Especial para o EM
Estruturado pela editora Martelo em três volumes (nomeados “Cave Carmen”, “Coram populo” e “Quantum satis”), o tríptico “Poesia reunida [1966-2009]” de Maria do Carmo Ferreira soma quase 600 páginas e cerca de 200 composições. Assim, pela primeira vez, estão reunidos poemas da autora, até então inéditos em livro. A organização do projeto, conduzida por Fabrício Marques e Silvana Guimarães, expressa com delicadeza a criação una e múltipla da escritora mineira.
Na próxima terça-feira, 28 de outubro, às 19h30, “Poesia reunida” receberá o Prêmio da Academia Mineira de Letras, na sede da instituição. A obra também é finalista do prêmio Jabuti (cujo resultado será anunciado na próxima segunda-feira, 27/10) e finalista do Oceanos, como foi divulgado na última quinta-feira.
Carminha, como é chamada, nasceu em 1938, em Cataguases, na Zona da Mata de Minas Gerais. Cursou Letras na UFMG e fez mestrado em Literatura Comparada na Universidade de Illinois. Nos anos 1980, estudou Teologia com o beneditino Dom Estêvão Bettencourt. Morou em diferentes lugares — Belo Horizonte, São Paulo, Estados Unidos, Europa — e trabalhou por 20 anos na Rádio MEC, no Rio de Janeiro. Desde 2009, mais reclusa, trilha uma jornada espiritual católica que parece incidir nas tessituras do lançamento premiado pela AML.
Ao longo da vida, a mineira publicou em periódicos como as revistas “Invenção” e “Ímã”, mas sobretudo no “Suplemento Literário de Minas Gerais”. Conviveu, de muitos modos, com Manuel Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Murilo Rubião, irmãos Campos, Décio Pignatari, Affonso Ávila, Laís Corrêa de Araújo, Ana C, Guilherme Mansur, Sebastião Nunes, entre outros poetas. Com alguns deles, inclusive, manteve correspondências inéditas.
Essa amplitude de vivências e convivências, por sinal, é correlata ao estilo de Maria do Carmo Ferreira. Ela se dedica a abundantes vias poéticas, aproximando tradições e experimentações, e gosta de causar estranhamentos ao realizar um “make it new”. Em seu tríptico de livros, reelabora legados de poema em prosa, composição visual, quadra, cantiga medieval, elegia, canção, poema dramático, soneto, rimance, epigrama, rondel, madrigal. No entanto, talvez evite o formalismo da arte pela arte: a heterogeneidade estética em Carminha parece visão de mundo que abraça uma ética democrática atrelada a uma espiritualidade em que o sagrado se confunde e se tensiona com o humano.
Por exemplo, no livro dois, “Coram populo” (que se poderia traduzir como “Diante do povo”), o texto “Do inutensílio poético” (de título tão leminskiano) conclui assim:
“Que o estético inclua, ao sê-lo, o lacre ético,
como o folclore avança além de um país
para irmanar a todos no mesmo afeto
entre flores, frutos e étnicas raízes”
Em Maria do Carmo Ferreira, o artístico se alia não apenas ao ético, mas também revela multiplicidades ontológicas do mundo. A “Poesia reunida” de fato irmana alternativas, tensionando a liberdade expressiva e o respeito aos cânones. Nas métricas, além da forma livre, vai do monossílabo ao dodecassílabo, com apreço especial pelas redondilhas. Nas estrofes, percorre do monóstico às longas estâncias, com recorrências criativas de tercetos e quadras. Nas rimas, produz interna e externa, toante e consoante, cruzada e polar, paralela e branca, afora homofonias como assonâncias e aliterações, uso de refrões e de reiterações que evocam a leitura litúrgica dos “Salmos”. Nessas tramas, não raro o eu textual deseja ser ‘Ninguém’, sendo tantos.
A seleção lexical da escritora, aliás, maneja vários idiomas. E seu vocabulário abrange espectros do sacro ao baixo calão, do neologismo ao arcaísmo, exibindo afinidades com a palavra-valise, o trocadilho e a colagem. É uma dicção que transita por tonalidades memorialísticas, amorosas, filosóficas, eróticas, religiosas, satíricas, líricas, circunstanciais, metalinguísticas.
Frente às variedades de Maria do Carmo Ferreira, é difícil escolher em breves linhas uma composição específica e representativa. Todavia, a própria arquitetura da trilogia editorial fala por si: a obra dimensiona intenções católicas da autora, criando afinidades com o Deus cristão, embora também possua ceticismos e irreverências. Ademais, nos tomos premiados, os poemas não ganham datações específicas, fazendo convergir para o presente a “Poesia reunida”. O tríptico aglomera trabalhos realizados dos 20 aos 70 anos; certos versos a acompanham durante décadas, obtendo inúmeros burilamentos e sobreposições temporais.
A serenidade de Carminha contrasta com a ansiosa lírica brasileira pós-2013. Nesse contexto em que as facilidades editoriais permitem a publicação apressada de tantos livros, a poeta prefere o recolhimento à urgência. Nos versos iniciais de “Entrevista”, a própria Maria do Carmo Ferreira, essa Emily Dickinson cataguasense, reflete:
“O que os olhos não veem
e o coração pressente.
O que vem permanente
mente ao coração
sem registro aparente
no poema se espraia
se contém se desmente.
Escrevo desde quando.
Publico esparsamente
em jornais literários
uma ou outra revista
que já não vêm ao caso:
a coisa é intermitente.
Que dizer na entrevista
que ora se me apresenta
a não ser do embaraço
de me perder de vista
entre fatos recentes
e um passado passado
em tal velocidade
que ainda me tem em mira
de estágio permanente?
Poesia é o que faço.
Sou inédita em livros”.
“Poesia reunida [1966-2009]”
Caixa em capa dura com três livros: “Cave Carmen”, “Coram populo”, “Quantum satis”
De Maria do Carmo Ferreira
lOrganização de Fabrício Marques e Silvana Guimarães
Ilustrações de Caio Borges
560 páginas
R$ 265
RAFAEL FAVA BELÚZIO nasceu em Carangola, na Zona da Mata mineira, e é formado em Letras (UFV) e Filosofia (UFMG), com mestrado e doutorado em Estudos Literários (UFMG). Autor do ensaio “Quatro clics em Paulo Leminski” (Ed. UFPR, 2024), atualmente é pesquisador da FAPES.