CINQUENTÕES CHEIOS DE VIDA

Três faróis nas trevas: Leminski, Gullar e Fonseca em 1975

Ana Lima Cecilio revisita "Catatau", "Poema sujo" e "Feliz ano novo", obras que iluminaram a literatura brasileira sob a ditadura militar

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Em texto originalmente publicado na newsletter A Lábia, a editora Ana Lima Cecilio comenta livros essenciais de Ferreira Gullar, Paulo Leminski e Rubem Fonseca lançados durante a ditadura militar e que se tornaram referência na literatura brasileira da segunda metade do século 20.

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Os livros publicados em 1975 são, óbvio, reflexo daquele ano, entre o medo da ditadura, que ainda comia solta, e a esperança de que as coisas, sim, tinham que mudar, não era possível que viveríamos para sempre naquela desgraça.

Elásticos e experimentais, profundos e explosivos, os livros cinquentões têm em comum a esperança de um país que se sente seguro da sua língua, que abraça a narrativa com uma força impressionante, de juventude de pensamento, cabelo ao vento, gente jovem reunida.

A gente olha essa safra literária colando num contexto de ditadura, e entende perfeitamente que a literatura é, pra usar a expressão do Maiakóvski, um jeito de arrancar alegria do futuro. De todo modo, são livros cheios de vida, nascidos com toda força criadora no meio das trevas inomináveis que foram os anos da ditadura.

"Catatau": "Exuberante e para ser lido também em voz alta"

Que flecha é aquela no calcanhar daquilo? Picatacapau! Pela pena é persa, pela precisão do tiro — um mestre. Ora os mestres persas são sempre velhos. E mestre, persa e velho só pode ser Artaxerxes ou um irmão, ou um amigo, ou discípulo ou então simplesmente alguém que passava e atirou por despautério num momento gaudério de distração. Flecha se atira em movimento, ninguém está parado. Nem o cavalo, nem o cavaleiro; nem a mente, nem a mão; nem o arco, nem a flecha, e o alvo o vento leva: tiro certo.

“Duvido se existo, quem sou eu se esse tamanduá existe?” E se o filósofo Descartes não tivesse passado a vida inteira numa Europa asséptica? E se ele tivesse embarcado na excursão de Maurício de Nassau, vindo parar no meio da selva barroca de Pernambuco? E se na modorra calorenta e cheia de mosquitos do Nordeste brasileiro ele tivesse fumado maconha? É desses delirantes pressupostos que nasce o tal do romance-ideia do poeta Paulo Leminski, seu primeiro livro e único romance, e, arrisco dizer, sua obra prima.

Intoxicado pelo absurdo da natureza brasileira, Descartes jorra sua invenção de linguagem nessa fórmula que atordoa razão e emoção, e que o próprio Leminski iria sintetizar tão bem quando se autodescreve: capricho e relaxo, bandido que sabe latim, samurai malandro. Num texto totalmente exuberante, feito também para ser lido em voz alta, junta poesia e filosofia, o pensamento mais fino e o humor mais surpreendente. Leminski, de olho na antropofagia de Oswald de Andrade e de ouvidos na Tropicália de Caetano, come páginas e páginas de novelas satíricas, relatos de viajantes, cartas de navegação e cospe com malemolência e leseira um retrato da natureza exótica, mas um exercício finíssimo da mais alta literatura. Um tanto hermético, é verdade, mas tão cheio de finuras que convidam à leitura de novo e de novo. Tem cinquenta anos, mas que frescor insuperável essa farra da linguagem.

“Catatau”

De Paulo Leminski

Iluminuras

256 páginas

"Poema sujo": "Um manifesto que é música e movimento"

bela bela mais que bela

mas como era o nome dela?

Não era Helena nem Vera

nem Nara nem Gabriela

nem Tereza nem Maria

Seu nome seu nome era...

Perdeu-se na carne fria

perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia

perdeu-se na profusão das coisas acontecidas

mudou de cara e cabelos

mudou de olhos e risos

mudou de casa e de tempo

mas está comigo está

perdido comigo

teu nome

em alguma gaveta

Talvez dos livros de 1975, este seja o que tenha os pés mais calcados no Brasil desgraçadamente sob o governo espúrio do Geisel. Gullar estava exilado na Argentina e, como todo cidadão brasileiro que tinha algum juízo, tinha medo de morrer, medo de esquecer, medo de ser esquecido, medo de não voltar do Brasil, de que nem houvesse mais Brasil. O “Poema sujo” é um longo poema narrativo, que parece ter nascido de uma convulsão inesquecível, ritmada, impressionantemente marcado pela força dos versos que são pura música e movimento, com a contundência de um “testemunho final”. Escrita automática, pura experiência subjetiva, umas imagens inesquecíveis fazem deste poema um manifesto que é preciso que a gente não esqueça nunca.

“Poema sujo”

De Ferreira Gullar

Companhia das Letras

112 páginas

"Feliz ano novo": "Contos brutais e revolucionários"

Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio. (Trecho de “Passeio noturno, Parte I”)

Proibido e recolhido em todo território nacional por ser “contrário à moral e aos bons costumes”, “Feliz ano novo” é uma coleção de contos brutais, crus e violentamente desgraçados, e sem exagero nenhum é possível dizer que revolucionou a literatura brasileira. Violência, drogas, taras sexuais e conflito de classes são retratados de um jeito inédito e Rubem Fonseca, à sua própria revelia, inaugurou assim uma multidão de imitadores, uns mais uns menos bem-sucedidos, nisso que se costumou chamar de literatura urbana brasileira.

Só pra dar um gostinho do que são esses contos: “Feliz ano novo” é a história de três amigos marginais, que resolvem dar a forra no mundo. “Corações solitários” é a história de um ex-repórter de polícia que arranja um emprego para responder cartas de mulheres num jornal feminino. “Passeio noturno” I e II são absurdos de construção sobre a doencinha de um personagem que gosta de sair à noite para atropelar pessoas anônimas. “Dia dos namorados” é uma aparição brilhante do detetive Mandrake com perversões sexuais, chantagens, mentiras e terríveis revelações. “74 degraus” é um primor de narração que conta os 74 passos de um assassinato articulado por duas mulheres. E isso é só um aperitivo. Vão por mim, leiam imediatamente.

“Feliz ano novo”

De Rubem Fonseca

Nova Fronteira

184 páginas

ANA LIMA CECILIO é editora, fez a curadoria das duas últimas edições da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e atualmente é editora-executiva da Record. Ela publica semanalmente a newsletter A Lábia, sobre literatura, na plataforma Substack.com

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