LITERATURA

Jean Wyllys analisa 'Eterna fantasia', sobre as feridas do Brasil recente

Livro de Danichi Mizoguchi reflete sobre o Brasil dos anos Bolsonaro e revela, pelas dores da alma, um retrato íntimo da solidão e da amizade em tempos de ódio

Publicidade
Carregando...
 

Jean Wyllys

Fique por dentro das notícias que importam para você!

SIGA O ESTADO DE MINAS NO Google Discover Icon Google Discover SIGA O EM NO Google Discover Icon Google Discover
 
Há livros que chegam como um soco, mas também como um afago. “Eterna fantasia” (Dublinense), do gaúcho Danichi Mizoguchi,  é um desses: não o romance que se lê numa viagem de avião e se esquece no bolso da poltrona, mas aquele que acompanha o leitor por dias, que devolve perguntas e nos obriga a encarar de frente os escombros do país e de nós mesmos.
 
Nascido em Porto Alegre, psicólogo de formação, doutor pela UFF, pós-doutor pela UERJ e autor premiado de “Cinco ou seis dias”, Danichi Hausen Mizoguchi decide, em seu novo livro, encarar o Brasil doente dos anos Bolsonaro pelo que ele tem de mais íntimo e insuportável: o abalo das nossas certezas, a solidão que a polarização nos impôs, a fratura exposta das amizades, a falência dos partidos que já foram faróis.
 
Maria, a protagonista, é uma mulher da velha esquerda que carrega no corpo e na memória um repertório de lutas e convicções. Até que esse repertório começa a se desfazer. Seus bares já não são mais espaços de divergência civilizada, mas trincheiras de ódio. “Não sei quando foi que começamos a falar sozinhos, cada um dentro do seu megafone. Mas lembro do dia em que me dei conta de que não queria estar lá”, diz Maria em uma das passagens mais pungentes, em que a perda de um espaço de debate se mistura à perda de um espaço afetivo. O realpolitik das legendas que um dia a encantaram a deixa órfã, e o “nós” de que ela fazia parte se torna um “ninguém”.
 
Sofia, por sua vez, é o oposto complementar: mais jovem, mais fresca, ainda disposta a acreditar que dá para refazer o país e as relações, embora carregue consigo o cansaço e as contradições de sua geração. “Se a gente desistir agora, eles vencem duas vezes”, diz ela a Maria, num daqueles diálogos em que a esperança parece teimosa e infantil, mas que justamente por isso funciona como antídoto contra o cinismo. É no encontro entre essas duas mulheres que reside o coração do romance. Não é uma amizade idealizada: é tensa, cheia de fricções, mas também de descobertas. É o que salva Maria — e talvez salve o leitor também.
 
Embora Danichi não cite meu conceito de “Falsolatria”, o romance inteiro parece habitado por ela. Maria e Sofia são personagens atravessadas por um mundo onde o falso tomou o lugar do real, onde memes e fake news moldam afetos e eleições, onde a imagem substituiu a experiência. A trama é um diagnóstico ficcional do mesmo fenômeno que venho elaborando filosoficamente: o triunfo da mentira sobre a verdade factual, a manipulação das subjetividades pelo capitalismo de vigilância e o esvaziamento do debate público.
 
Mas não é só crítica. “Eterna fantasia” é também uma aposta. Ao situar sua narrativa em bares, praças, ruas, e até em viagens a Cuba e ao Uruguai, Danichi nos lembra que a vida continua pulsando, mesmo sob ataque. Há humor, há desejo, há o perigo gostoso de se apaixonar — e há, sobretudo, o gesto de não abrir mão da fantasia de que tudo isso ainda pode fazer sentido.
 
Literatura como essa não é para consumo rápido nem para quem quer se manter intocado. Ela incomoda, desestabiliza, mas também edifica. O leitor sai dela transformado, talvez um pouco mais melancólico, mas com a sensação de que não está só na sua perplexidade. Num momento em que boa parte da produção literária se rende ao algoritmo, Danichi nos entrega um romance que desafia a pressa e nos devolve a complexidade de ser gente.
 
“Eterna fantasia” é, afinal, sobre o que nos resta quando o país desaba sobre nossas cabeças: a amizade, o afeto e essa teimosia bonita de continuar acreditando que outra história é possível. É essa a fantasia eterna – ainda que rasgada – da qual não abrimos mão. 

Trecho

(De “Eterna fantasia”, de Danichi Mizoguchi)


“Caramba, Dulce, é gente que nos conhece há anos, faz reunião com a gente, bebe com a gente, almoça com a gente, faz projeto com a gente, trabalha com a gente, gosta da gente, faz festa com a gente, cara, essa galera vê essa putaria acontecendo e fica quieta?, só olhando?, não tem um pra dizer que nos conhece e sabe que a gente jamais manipularia uma seleção?, que se alguém acha que a gente manipularia é preciso provar?, que um suposto e-mail ou uma suposta ligação de um suposto candidato não serve?, que não basta ter convicções, tem que ter provas?, a Regina foi a única que teve coragem de levantar a mão e nos defender, o resto ali olhando, com cara de santo, umas morais vazias, e é isso, né?, tem colega que vira a cara no corredor, não cumprimenta mais, esse tempinho é mesmo de falsos santos e falsas morais, é o espírito da época, o zeitgeist, falou tá falado e todos os manés acre ditam, caralho, como é fácil fazer isso, é só criar uma fake e correr pro abraço, porque o gado todo vira hiena rindo em volta da carcaça, barbadinha, e tu viu que eles usaram a expressão sangue e terra?, a honra diz respeito ao sangue e à terra, cara, essa expressão é nazista, é blut und boden em alemão, sangue e terra, quando eu me dei conta disso lembrei do poema do Brecht na hora, não sei o título, fala dos negros, dos operários, pesquisa aí, isso, esse mesmo, esse é o nome, é preciso agir, olha que impressionante, eu vou ler, tá, primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso, eu não era negro, em seguida levaram alguns operários, mas não me importei com isso, eu também não era operário, depois prenderam os miseráveis, mas não me importei com isso porque eu não sou miserável, depois agarraram uns desempregados, mas como tenho meu em prego também não me importei, agora estão me levando, mas já é tarde, como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo, será que as pessoas pensam que vão estar imunes?, será que não percebem?, será que não sacam que depois que o ovo da serpente começa a ser chocado não dá mais pra voltar atrás?”

JEAN WYLLYS é jornalista, escritor e artista visual. Ex-deputado federal, é autor, entre outros livros, “O que não se pode dizer: experiências do exílio” (Civilização Brasileira, 2022), “Falsolatria” (Editoras Nós e Sesc SP, 2024), e o recém-lançado “O anonimato dos afetos escondidos” (Tusquets), retorno à ficção após cinco anos de exílio político.

“Eterna fantasia”
De Danichi Hausen Mizoguchi
224 páginas
R$ 69,90

Tópicos relacionados:

jean-wyllys

Acesse o Clube do Assinante

Clique aqui para finalizar a ativação.

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay