Ney Anderson
Especial para o EM

Não é de hoje que autores se debruçam sobre o próprio trabalho e oferecem aos leitores reflexões pertinentes ao fazer literário e tudo o que acontece no entorno da criação. Desde nomes como Flaubert, Schopenhauer, Voltaire, George Orwell, Ernest Hemingway, Ray Bradbury, Jorge Luis Borges, Júlio Cortázar, até autores como Gay Talese, Stephen King, Elena Ferrante, Umberto Eco, Mario Vargas Llosa, Haruki Murakami. Sem esquecer de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Assis Brasil, Raimundo Carrero, entre muitos outros, inclusive nomes bem recentes da literatura. Todos se inquietaram(e se inquietam) com os mistérios que compõem os textos ficcionais e das experiências com a escrita.


Não foi diferente com o pernambucano Osman Lins (1924-1978), que também escreveu um belo e sincero livro a respeito disso. Lançado originalmente em 1969, com segunda edição em 1974, chega agora às mãos dos leitores a terceira edição de “Guerra sem testemunhas”, ensaio no qual ele analisa as questões que fazem parte da rotina do escritor.

Em dez grandes capítulos, o autor de “Avalovara” e “Lisbela e o prisioneiro” fala sobre o ato de escrever, o escritor e a vocação, o escritor e a obra, a máquina editorial, o escritor e o teatro, o escritor e o livro, o escritor e o leitor, as várias formas de crítica e a sociedade, entre outros assuntos. A publicação é uma parceria entre a Cepe e a editora da UFPE. A organização, apresentação e notas presentes na obra são de Fábio Andrade. Inclui ainda uma nota do próprio autor para a segunda edição.


São vários os temas que o autor destaca com profundidade, como a inspiração e lucidez, condições indispensáveis a um futuro escritor, conceito de obra e as falsas obras, a obra literária e a imprensa, direitos autorais, o editor analisado, o conceito da profissão, os limites com o teatro, o preço do livro, escrever sem leitores, os prêmios literários, a crítica, a censura e a verdadeira crítica, o escritor no mundo contemporâneo, através dos tempos, o escritor e as comunicações de massa, a crise da palavra, a ação política, o escritor como servidor. Também estudos sobre a origem do livro, com o papiro, o códice e se o livro está morrendo. Ao final da obra, existe um apêndice com algumas resenhas da época dos primeiros lançamentos e fotos do autor.


Osman Lins apresenta um texto delicado, atento, esmiuçando a literatura. O engano da vocação, o rumo tomado às cegas, o esforço total e a luta exaustiva dos autores. A obra como algo que o autor imagina e escreve, passando pela relação abstrata da literatura com o leitor. Ele reflete sobre o que distingue as várias obras dos escritores.

E dá muitos conselhos aos iniciantes. Por exemplo, em como pensar em um projeto literário, inventar de modo significativo, a importância do nome dos personagens, escrever a partir do mundo que o escritor conhece, ser local para alcançar o universal, o ofício de escrever como centro da sua existência, o artesanato para aperfeiçoar o texto, busca e elucidação da história, escrever sempre, mesmo em estado de luto e tensões permanentes, a criação de cidade oníricas e não deixar o livro abandonado após a escrita e a publicação, ter zelo com o trabalho.

Pois é assim, nas várias tentativas de criação, que se forma o despontar do mundo particular do autor. A evolução de cada um. Osman rechaça, por exemplo, o caráter de inspiração sobrenatural do ato criativo. A obra, para Osman, é um ser vivo.


Uma parte do livro pode ser entendida como uma oficina literária, por assim dizer, pois fala dos aspectos que compõem a ficção. São questões atemporais sobre a relação obra, mercado, lucro entre editores e escritores.

Curioso que Osman Lins já alertava para a indiferença que um livro pode causar nas pessoas. Mas nem por isso o escritor deve se ver preso na falta de ânimo, na dificuldade da literatura se impor na sociedade. O desgosto que acomete o escritor em vários momentos. No entanto, ele alerta, um livro não precisa ser compreendido na íntegra. Segundo ele, vale mais o trabalho duro, a realização da obra, do que o sucesso. O êxito do autor é conseguir, justamente, elaborar algo real a partir das ideias que estavam apenas na sua cabeça. O resto é lucro, mesmo com todos os percalços. Inclusive a curta durabilidade dos vários textos literários


Osman Lins retrata ainda a pesada rotina burocrática (ele foi um servidor público) que consome o tempo da escrita. Por isso, ele diz, todo momento livre é o momento para escrever. Com a única preocupação de construir uma boa obra, não menos do que isso, para as pessoas do próprio tempo. É importante ressaltar que o autor faz uma grande autocrítica, analisando a própria obra.

Ao escrever o ensaio, Osman criou um personagem fictício, Willy Mompou, para intercalar os capítulos, com o objetivo de se distanciar do próprio texto e ficar mais livre na composição das ideias que aborda. Nesse caso, o autor se torna, ao mesmo tempo, um outro. Duplo. O que procura é o que observado. Através desse personagem ele vai contando a própria biografia.


Questões que estavam no espírito de Osman, como o conceito de obra, a experiência de vida, de quais reflexos a obra é tecida, as influências estrangeiras, a demora entre o ato de escrever e a publicação para um consumidor que ainda não existe.


Osman fala do ato da escrita criativa de uma forma muito pessoal, dando os próprios exemplos. O livro carrega uma certa carga de erudição, mas a leitura não é desanimadora. Página após página, o leitor encontra um autor em completo domínio do seu ofício, oferecendo o melhor que a experiência lhe deu: a chama da literatura, da ficção.


Por meio da terceira pessoa, na figura de Willy, ironiza o ato criativo mostrando um autor palestrando para o auditório vazio. O título, portanto, não poderia se encaixar tão bem. A guerra que o escritor trava consigo mesmo, de frente para um mundo vazio.


Existem escritores que são basilares. Osman Lins é um deles. Infelizmente não tão festejado ultimamente, o autor mostra, com este livro, todo o artesanato mental e braçal que se desdobrou ao longo da carreira. É curioso, e bastante sintomático, que as reflexões de Osman acerca do papel do escritor no Brasil sejam tão atuais. E, pelo visto, perenes. Passados tantos anos, as questões são basicamente as mesmas presentes em “Guerra sem testemunhas”.


Refletir sobre as questões abordadas por Osman é entender que a arte no Brasil continua bebendo da infeliz fonte do passado, com os mesmíssimos problemas. É uma visão trezentos e oitenta graus no que diz respeito à literatura.


Osman Lins, que completaria 100 anos em 2024, aproxima o leitor dos seus dilemas. É um texto sem meias palavras, onde o autor oferece os seus pensamentos acerca do que lhe tocava o coração, do que rondava a sua criação e das questões que faziam parte da rotina de escritor e leitor. “Guerra sem testemunhas” aproxima leitores atuais de um criador que tinha compromisso com a literatura acima de todas as outras coisas. Era não uma devoção, mas um sacerdócio, entrega total pela arte. Mesmo que o reconhecimento não fosse o objetivo principal. A sua guerra sem testemunhas era, como o título diz, consigo mesmo.


Osman Lins, que completaria 100 anos em 2024, aproxima o leitor dos seus dilemas. É um texto sem meias palavras, onde o autor oferece os seus pensamentos acerca do que lhe tocava o coração, do que rondava a sua criação e das questões que faziam parte da rotina de escritor e leitor. “Guerra sem testemunhas” aproxima leitores atuais de um criador que tinha compromisso com a literatura acima de todas as outras coisas. Era não uma devoção, mas um sacerdócio, entrega total pela arte. Mesmo que o reconhecimento não fosse o objetivo principal. A sua guerra sem testemunhas era, como o título diz, consigo mesmo.

Reprodução

“Guerra sem testemunhas”
• De Osman Lins
• Cepe/UFPE
• 332 páginas
• R$ 70

Trecho

“Terminada a obra, não superamos essas incertezas, essas vacilações. Mas há sempre um instante não destituído de solenidade e que não trocaríamos por nenhuma outra riqueza: este em que chegamos ao fim de nosso livro, em que a última página é escrita, em que podemos dizer a nós próprios, aos nossos amigos, que a obra está composta, que triunfamos sobre o informe, levando a termo o empreendimento a que meses antes, talvez anos, nos houvéramos lançado.”


Trecho

“Com o passar do tempo, solicitada por esse vazio cujo rumor aprendemos a escutar, uma das obras que, desde anos, medrava em nosso espírito, desenvolvendo-se ao mesmo tempo que a outra era composta, vem a definir-se, e com ímpeto, agora que as nossas energias, novamente ociosas, nela se concentram. Um dia, sentamo-nos à mesa e acariciamos, com gravidade, fé, pertinácia e alegria, algumas folhas de papel em branco. Estamos novamente em face do mundo, tensos, prontos a enfrentá-lo, a empreender mais um combate com a nossa própria fragilidade. Surge a primeira frase indecisa, a primeira página, novo ciclo tem começo, com o empenho global de nossas forças.”

NEY ANDERSON é jornalista, escritor, crítico literário e criador do blog “Angústia criadora”

Osman Lins

Reprodução


Depoimentos

“Quero ser Osman Lins quando eu crescer”

“Osman Lins influenciou Cortázar. Eram parceiros de jogo e de hiperlincagem (Cortázar em um de seus livros usa epígrafe extraída do engenhoso ‘Avalovara’). Osman foi quem inventou o avatar. Ele criou carinhas alienígenas para cada personagem. Os livros deles estão repletos de sinais de outro mundo. ‘Nove, novena’ é meu livro de cabeça-cabeceira. ‘Escalavra’, que denomino um ‘romance megalítico’, é muito fiel às pedras que ele deixou pelo caminho. Eu quero ser Osman Lins quando crescer.”

Marcelino Freire
Autor de livros como “Angu de sangue”,
“Nossos ossos” e do recém-lançado “Escalavra” (Amarcord)


“Conjugava, de modo feliz, experimentação e corte clássico”

“Júlio Cortázar dizia que se tivesse escrito ‘Avalovara’, não precisaria escrever por mais vinte anos. Não é Osman Lins um escritor de amenidades, mas um modelo de escritor engajado: na e pela literatura, no compromisso com a forma – sem maiores concessões. Talvez em situação similar à de Julien Gracq, na França: sem alardes, um clássico desde cedo. As qualidades mais valiosas de um livro são como que secretas e se revelam aos poucos, sempre com parcimônia(‘Avalovara’, edição da Melhoramentos de 1973). Osman conjugava, num modo feliz, experimentação e corte clássico. Porqueele é o terceiro momento marcante da literatura moderna no Nordeste. O primeiro é Manuel Bandeira, contra o abuso do verso feito pela escolástica parnasiana. Bandeira areja a poesia em novos ritmos que o verso, agora despregado do antigo molde, desfralda em bandeira. O segundo é João Cabral na luta contra as amarras da convenção poética, optando por um rigor formal para devolver ao verso seu vigor constitutivo. O terceiro momento é Osman Lins, que vai fazer o texto de prosa recompor com a poesia, tornando tênue, senão falsa, a fronteira entre ambas –a poesia livre que irrompe a cada instante, no dizer de Antonio Candido. O texto de Osman é antes de tudo, poético – tenta dar a ouvir a secreta melodia (sustenida) existente por entre as dissonâncias do real.”

Lourival Holanda
Crítico literário e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)


“A mais perfeita lapidação de seu ofício”

“Impressionam em Osman Lins a diversidade e a qualidade de sua obra. Foi sempre um esteta na mais perfeita lapidação de seu ofício.Estreou com um romance, ‘O visitante’, em 1955, de funda influência do realismo social do romance de 30. Este sentimento aparece nos livros seguintes, ‘Os gestos’, contos de 1957, e ‘O fiel e a pedra’, romance de 1961. Nesta fase inicial, aparecem laivos do cotidiano fantástico, marca de seus outros livros.


Em 1959, estudando dramaturgia no Recife, conhece Hermilo Borba Filho, que o leva a cultuar a estética popular picaresca, traduzida na peça ‘Lisbela e o prisioneiro’, de 1964. A junção das culturas popular e erudita aparece nos textos teatrais e nos escritos para a televisão.


O ensaísta começa com um livro modesto, ‘Um mundo estagnado’, em 1966, dizendo dos problemas do ensino de literatura e língua portuguesa, tema desenvolvido em textos enfeixados nos livros ‘Do ideal e da glória’ (1977) e ‘Evangelho da Taba’ (1979). A plenitude do ensaísta vem com ‘Guerra sem testemunhas’ (1969) e ‘Lima Barreto e o espaço romanesco’ (1976). Em essência, Osman era um ficcionista ousado e decidido a enfrentar desafios. Suas narrativas de ‘Nove, novena’ e os romances ‘Avalovara’ e ‘A rainha dos cárceres da Grécia’ mostram um autor maduro, consciente, mas sempre disposto a quebrar o comodismo do leitor. Escrevendo sobre Hermilo Borba Filho, Osman o classificou como invencível. Hoje sabemos que Osman se agrega a esta espécie humana, a dos invencíveis.”

Maurício Melo Júnior Jornalista, crítico literário e escritor

Outros relançamentos

Os gestos

Reprodução


Os gestos
• De Osman Lins
• Olho de Vidro
• 136 páginas
• R$ 89,90

Lançado em 1957, “Os gestos” é uma coletânea de 13 contos que, segundo Osman Lins em prefácio da edição de 1975, despertava afeição especial no autor pelo fato de, após mais de dez anos de exercício constante de escrita, enxergara no livro que a sua “luta com a arte de narrar (...) encontrava finalmente um rumo e, parece, uma resposta.” No mesmo prefácio, Osman revela que, ao escrever, estava imbuído de “uma brandura que não mais existe – e, e existe, é infiltrada de veneno.” Entre os destaques, preciosidades como “Reencontro”, um dos melhores contos do livro.

Reprodução


“Avalovara”
• De Osman Lins
• Pinard
• 450 páginas
• R$ 89,90

Considerado um dos projetos literários mais ousados do Brasil e há tempos sem ganhar reedição, “Avalovara” foi publicado pela primeira vez em 1973, em um dos períodos mais agudos da ditadura militar. A narrativa sobre a escrita e o mundo parte da vida de Abel, jovem escritor que almeja o domínio da criação artística, do amor e do autoconhecimento enquanto busca a cidade mítica que vislumbrou quando era criança. A edição da Pinard, em capa dura, integra a coleção Prosa Latino-Americana e inclui ilustrações.

compartilhe