Salman Rushdie -  (crédito: Kirill KUDRYAVTSEV / AFP)

Salman Rushdie

crédito: Kirill KUDRYAVTSEV / AFP

“No excelente romance brasileiro de Machado de Assis, 'Memórias póstumas de Brás Cubas', o herói do título confidencia que está contando sua história além-túmulo. Ele não explica como, e esse truque eu ainda não aprendi. Então, tendo sobrevivido – e há muito mais a dizer a respeito – não consigo evitar meu carinho mental pela livre associação”. Essa declaração bem-humorada é a única passagem de descontração do livro “Faca: Reflexões sobre um atentado” (“Knife: Meditations after atlempted murder”), do escritor indo-britânico Salman Rushdie, de 76 anos.

 

A obra, que tem outras inúmeras citações literárias, relata as dores e o sofrimento pelos quais Rushdie passou em apenas meio minuto e meses após o atentado de que foi vítima em 12 de agosto de 2022 nos EUA. Um drama para muitas reflexões, não apenas de Rushdie, mas também dos leitores do livro e de quem se preocupa com a intolerância que avança a passos largos no mundo atual.


Ao longo de 225 páginas, Rushdie expõe de forma comovente sua luta pela vida após levar levar diversas facadas e a difícil recuperação com o apoio da mulher, dos dois filhos e de amigos, entre eles o escritor norte-americano Paul Auster, que à época foi diagnosticado com câncer e morreu no último dia de abril deste ano. Ele também põe abaixo – com inteligência notável e defesa irrestrita da arte – a intolerância e o totalitarismo religiosos dos quais foi vítima.


Salman Rushdie nasceu em 19 de junho de 1947, em Bombaim (hoje Mumbai), na Índia, país que dois meses depois se tornaria independente do domínio britânico. Mudou-se para a Inglaterra, onde se formou na Universidade de Cambridge. Escreveu inúmeros livros de ficção, primando pelo realismo mágico, e ensaios, recebeu diversos prêmios e viveu sem atribulações até 1989, quando sua vida sofreu mudanças radicais e ele nunca mais teve paz.

 

 

Em setembro de 1988, ele publicou, por uma editora britânica, o romance “Os versos satânicos” e ganhou, da pior forma possível, fama mundial, porque a obra foi considerada ofensiva ao profeta Maomé nos países islâmicos. Como se sabe, o islamismo foi fundado no início do século 7 pelo líder religioso Muhammad, conhecido no Ocidente como Maomé, após revelação do anjo Gabriel. Rushdie relata em “Os versos satânicos” as aventuras picarescas de dois indianos mortos num ataque terrorista, mas que voltam à vida ilesos numa praia, graças à fantástica imaginação do escritor, e satirizam o profeta Maomé.

 

capa do livro "FACA: REFLEXÕES SOBRE UM ATENTADO"

capa do livro "FACA: REFLEXÕES SOBRE UM ATENTADO"

reprodução

 

“FACA: REFLEXÕES SOBRE UM ATENTADO”
• Salman Rushdie
• Tradução: Cássio Arantes Leite e José Rubens Siqueira
• Companhia das Letras
•  225 páginas
• R$ 69,90

 

Jurado de morte

 

Em 14 de fevereiro de 1989, o aitolá Khomeini, líder supremo da teocracia do Irã, sentenciou Rushdie à morte por meio de uma fatwa – decreto religioso – por considerar que “Os versos satânicos” ridicularizava Maomé. Ofereceu recompensa de 3 milhões de dólares a quem matasse o escritor e qualquer outra pessoa envolvida com o livro.

 

 

A vida de Rushdie e de todos em seu entorno, sem trocadilho, virou um inferno pela condenação religiosa. Khomeini tinha liderado, dez anos antes, a revolução islâmica que depôs o xá Reza Pahlavi. O fundamentalismo islâmico com poder mortal estava apenas começando.


O aiatolá ordenou que “todos os muçulmanos devotos” executassem Rushdie, que então passou a viver escondido, mudou de endereço dezenas de vezes apenas nos seis meses seguintes. Houve furor em vários países, inclusive na Índia, terra natal do escritor. Exemplares do livro foram queimados em praça pública mundo afora e o escritor escapou de diversas tentativas de assassinato.


Khomeini morreu meses depois, em 3 de junho de 1989, mas a sua maldição permaneceu. Em 1991, o tradutor japonês de “Os versos satânicos” foi esfaqueado e amigos italianos e noruegueses do escritor agredidos. Na Turquia, 37 pessoas morreram em incêndio num hotel onde manifestantes atacaram o tradutor da obra no país.

 


Em 2005, o aitolá Ali Khamenei, sucessor de Khomeini e ainda dono do poder no Irã, reforçou a fatwa. Em 2016, vários meios de comunicação do Irã adicionaram 600 mil dólares à recompensa de Khomeini pela cabeça do escritor. Rushdie se mudou de Londres para Nova York e, apesar dos riscos, passou a levar uma vida normal, segundo ele, pegando até metrô sem problemas. Apesar da perseguição sofrida nas últimas décadas, ele não imaginava o que estava por vir, como ele afirma na obra.


A voltado do terror

 

Em 12 de agosto de 2022, mais de 30 anos após a sentença de morte decretada por Khomeini, Rushdie, com a segurança afrouxada, foi surpreendido pelo ataque com faca praticado por Hadir Matar, de 24 anos, morador de Nova Jersey. O agressor seria simpático à Guarda Revolucionária Iraniana, como indicavam suas redes sociais antes do atentado. Acusado de tentativa de homicídio sem possibilidade de fiança pela promotoria de Nova York, Hadir aguarda julgamento, que deve ocorrer no segundo semestre de 2024. O Irã negou envolvimento no atentado.


Rushdie tinha se casado pela quinta vez 11 meses antes do atentado, em setembro de 2021, com a poeta norte-americana Rachel Eliza Griffiths. Em “Faca”, ele conta que estava feliz, plenamente realizado em sua vida aos 75 anos, prestes também a lançar mais um romance, “Cidade da vitória”. Passeou pela Europa em lua de mel.

 

 

Até que chegou a fatídica manhã de 12 de agosto de 2022, quando sua vida sofreu a mudança radical mais radical. Ele estava sentado no anfiteatro da instituição de ensino de Chautauqua, no estado de Nova York, para fazer palestra sobre segurança de escritores, ironicamente – ele não sabia, é claro, da ameaça mortal. Antes da palestra, Hadir Matar, que estava na plateia, saiu correndo em sua direção e o esfaqueou diversas vezes.


Ao longo de “Faca: Reflexões sobre um atentado”, Rushdie não cita em nenhum momento o nome do seu agressor. Refere-se a ele sempre como “A”. É um relato bem íntimo do dia e das semanas seguintes de dor e sofrimento, que geraram muitas reflexões sobre perdas, morte e a busca de força para retomar a vida brutalmentes vilipendiada.

 

'O golpe mais cruel'

 

Salman Rushdie relata seu inconformismo com a perda do olho direito, que foi dilacerado por uma facada profunda no ataquel brutal que sofreu em 2022.

 

“Às quinze para as onze do dia 12 de agosto de 2022, uma manhã ensolarada de sexta-feira, no norte do estado de Nova York, fui atacado e quase morto por um jovem com uma faca, logo depois que subi ao palco do anfiteatro de Chautauqua para falar sobre a importância de garantir a segurança para escritores”, conta Rushdie em “Faca”.


“Ainda vejo o momento em câmera lenta. Acompanho com os olhos o homem que corre, salta da plateia e avança até mim. Continuo olhando para ele. Não viro as costas em nenhum momento. Não há ferimentos em minhas costas. Ergo a mão esquerda para me defender. Ele crava nela a faca. Depois, vários golpes, em meu pescoço, peito, olhos, em tudo, sinto as pernas cederem e caio”, detalha Rushdie.


Segue o relato do horror: “Segundo o noticiário, A. passou 27 segundos comigo. Em 27 segundos, se você é religioso, dá para recitar o pai-nosso. Ou, deixando de lado a religião, ler e voz alta um soneto de Shakespeare.” O escritor foi esfaqueado diversas vezes, mas o pior foi a perda de um olho: “E havia a facada no olho. Esse foi o golpe mais cruel e foi uma ferida profunda. A lâmina penetrou até o nervo óptico, o que significava que não havia nenhuma possibilidade de salvar a visão. Estava perdida. Ele simplesmene esfaqueava loucamente, esfaqueava e cortava, a faca me atingindo com se tivesse vida própria, e eu, caindo para trás, para longe dele, enquanto me atacava; na queda bati com força com o ombro no chão”.


Rushdie sobreviveu ao ataque devido à “incompetência” do agressor. “'Sabe qual foi a sua sorte? Sua sorte foi que o homem que te atacou não tinha a menor ideia de como matar um homem com uma faca'”, disse um dos médicos que o atenderam.

 


Salman Rushdie conta também que seu agressor concedeu entrevista no presídio de Chautauqua ao New York Post. “Ele revelou que a ‘inspiração’ para ir a Chautauqua foi quando viu um tuíte ‘em algum momento de inverno’ anunciando que eu ia participar do evento lá. ‘Quando ouvi dizer que ele sobreviveu, fiquei surpreso’, disse ele também. (…) Ele admirava o aiatolá Khomeini e sua opinião sobre mim era: ‘Não é uma boa pessoa, não gosto dele. Ele não tinha lido mais do que 'umas duas páginas’ do meu trabalho, mas assistira a uma palestra minha no YouTube e concluiu que eu era ‘dissimulado’. ‘Não gosto de gente que é assim dissimulado’, ele disse. Dissimulado em quê? Ele não explicou”.


'Felicidade profunda'

 


Salman Rushdie diz que sempre se manteve longe das redes sociais e dos holofotes, independentemente das ameaças de morte, graças à “felicidade profunda”. Em “Faca”, ele reflete: “Existe uma felicidade profunda que prefere a privacidade, que floresce longe dos olhos do público, que não exige a validação de ser conhecida: uma felicidade que existe apenas para as pessoas felizes, que é, em si mesma, suficiente. Eu estava farto de ter minha vida privada dissecada e julgada por estranhos, cansado com a malícia de línguas venenosas. Eliza [a quinta esposa] era e ainda é uma pessoa muito reservada, cuja maior preocupação por estar comigo era de que talvez precisasse renunciar à sua privacidade e se ver banhada na ácida luz da publicidade. Eu tinha vivido tempo demais nesse brilho sem sombras e não desejava isso para ela. Não desejava isso para mim”, afirma Rushdie.


“Algo estranho aconteceu à ideia de privacidade em nosso tempo surreal. Em vez de ser bem-vinda, parecia ter se tornado, para muitos no Ocidente, sobretudo os jovens, uma qualidade sem valor, efetivamente indesejável. Se uma coisa não se torna pública, ela não existe de fato. Seu cachorro, seu casamento, sua praia, seu bebê, seu jantar, o meme interessante que você acabou de ver, essas coisas precisam ser compartilhadas dia após dia”, reflete o escritor.

 

Lado perverso da religião

 

Tão importantes quanto os relatos do sofrimento do ataque e do drama dos meses de recuperação são as reflexões que Salman Rushdie faz em “Faca” sobre religião e intolerância e o dilema de escrever o livro sobre a agressão que sofreu. “Para ser franco, este é um livro que teria preferido mil vezes não precisar escrever (…) Fiz de tudo para evitar o clichê de um elefante na sala, mas a verdade incontornável era que havia uma droga de mastodonte gigantesco no meu espaço, agitando a tromba, bufando e com um cheiro para lá de forte (…) Este livro constitui um acerto de contas”, diz o escritor.


E sobre religião, Rushdie afirma categoricamente: “Vou expressar aqui, pela última vez, minha opinião sobre religião – qualquer religião, todas as religiões –, e depois, no que me diz respeito, é assunto encerrado. Não acredito na ‘evidência de coisas invisíveis’. Não sou religioso. Venho de uma família em que a maioria não é religiosa. (Minha irmã mais nova, Nabila, que morreu precocemente, foi uma exceção. Ela era devota.) Nunca senti necessidade da fé religiosa para me ajudar a compreender o mundo e lidar com ele. Porém, entendo que para muita gente a religião proporciona uma âncora moral e parece essencial”.


O escritor segue em sua reflexão: “E na minha opinião a fé pessoal de alguém não é da conta de ninguém, exceto do indivíduo em questão. Não tenho problema com a religião quando ela ocupa seu espaço privado e não tenta impor seus valores aos outros. Mas quando a religião vira um instrumento político, até um instrumento de morte, passa a ser da conta de todo mundo, devido à sua capacidade de causar o mal.”


“Irracionalidade medieval”


Rushdie afirma ainda em “Faca”: “Após os [8] assassinatos do Charlie Hebdo [jornal francês vítima de ataque extremista em 2021], escrevi o seguinte: A religião, uma forma medieval de irracionalidade, quando combinada ao arsenal de armas moderno, torna-se uma real ameaça às nossas liberdades. Esse totalitarismo religioso está causando uma mutação fatal no coração do islã e vimos as consequências trágicas em Paris. Posiciono-me ao lado do Charlie Hebdo, como devemos fazer todos para defender a arte da sátira, que sempre foi uma força a favor da liberdade, e contra a tirania, a desonestidade e a estupidez. “‘Respeito pela religião’ se tornou uma frase cifrada que quer dizer ‘medo da religião’. As ideias religiosas, como quaisquer outras merecem críticas sátiras e, sim, nosso destemido desrespeito”.

 

PRINCIPAIS OBRAS DE SALMAN RUSHDIE

 

Capa do livro "Os filhos da meia-noite" (1981)

Capa do livro "Os filhos da meia-noite" (1981)

Reprodução

 

“Os filhos da meia-noite” (1981)
Romance trata das aventuras e poderes mágicos de um grupo de crianças nascidas em 1947, no momento em que a Índia se tornou independente do Reino Unido. Venceu o prêmio Booker em 1981.

 

Capa do livro "Os versos satânicos" (1988)

Capa do livro "Os versos satânicos" (1988)

Reprodução

 

“Os versos satânicos” (1988)
Livro que deu fama mundial a Rushdie por causa da ordem do aiatolá Khomeini, do Irã, para matá-lo, por considerá-lo ofensivo ao profeita Maomé. É a saga de dois atores indianos na Inglaterra na década de 1980. Os dois assumem respectivamente os papéis de Deus e do Diabo, atravessam um labirinto de situações hilárias sobre questões da época, como a globalização.

 

Capa do livro "O chão que ela pisa" (1999)

Capa do livro "O chão que ela pisa" (1999)

Reprodução

“O chão que ela pisa” (1999)
Romance sobre um triângulo amoroso na Índia após a independência. Salman Rushdie cria versão complexa do mito de Orfeu e Eurídice, em que o homem apaixonado desce aos infernos para resgatar a amada.

 

Capa do livro "Shalimar, o equilibrista" (2005)

Capa do livro "Shalimar, o equilibrista" (2005)

Reprodução

 

“Shalimar, o equilibrista” (2005)
A paixão de um embaixador norte-americano por uma dançarina de etnia hindu na região da Caxemira, de maioria muçulmana, gera conflito internacional entre Índia, Paquistão e aliados no Oriente e no Ocidente.

 

capa do livro "Quichotte" (2019)

capa do livro "Quichotte" (2019)

Reprodução

 

“Quichotte” (2019)
O romance é inpirado no clássico “Dom Quixote”, que é trazido para os dias atuais. Conta a história de um atrapalhado vendedor de produtos farmacêuticos que perde o emprego e, já velho, sai pelos EUA na companhia de Sancho, no caso, um filho adolescente e imaginário.

 

capa do livro "Cidade da vitória" (2023)

capa do livro "Cidade da vitória" (2023)

Reprodução

 

“Cidade da vitória” (2023)
Trata do surgimento, ascensão e queda de um império ao longo de 250 anos na Índia. Uma garota de 9 anos tem um encontro divino que mudará o curso da história. Depois de assistir à morte da mãe, ela incorpora uma deusa que lhe concede poderes que levará ao surgimento de uma grande cidade chamada Bisnaga, a Cidade da Vitória.

 

“Faca – Reflexões sobre um atentado” (2024)
Livro de memórias em que Rushdie detalha o atentado a faca que sofreu nos EUA em 2022 e sua sofrida recuperação. Na obra, ele faz importantes reflexões sobre religião e o perigodo fundamenalismo islâmico.