Ludimila Moreira
Especial para o EM

 

Os romances de Jamaica Kincaid, consagrada autora caribenha das ilhas de Antígua e Barbuda, são reconhecidos por uma linguagem em voltagem intimista que revela um extraordinário manejo estilístico na exploração e entrecruzamento de texturas, dores e retratos de diferentes temporalidades subjetivas e históricas.

 

Os livros já publicados no Brasil pelo selo Alfaguara, como “Autobiografia da minha mãe” e “Agora veja então”, juntamente com o recém-lançado “Annie John”, de 1985, confirmam a maestria da autora – recentemente confirmada como uma das atrações da Feira do Livro, em São Paulo, no final de junho – em criar mundos ficcionais complexos e reflexivos sem recorrer a experimentalismos linguísticos e floreios poéticos.


A prosa memorialística, de empenho dramático, num primeiro momento pode soar singela pela escolha de temas que orbitam relações familiares, mas ao longo de uma linguagem às voltas com personagens e seus sofridos aparelhos psíquicos ela mostra ambições filosófica e política.

 

Ao explorar cosmogonias familiares e seus entes fundadores de crenças, valores e tradições, Kincaid também abre espaço para discussões intergeracionais sobre heranças culturais, mudanças sociais e as interseções entre o individual e o coletivo nas ilhas caribenhas de Antígua e Dominica.

 




Em um périplo de conquista da vida adulta e de revelação dos tumultos da infância e adolescência, marcados por um dicção abertamente feminista e antirracista, que forjaram a identidade de “Annie John”, Jamaica Kincaid destrincha as marcas do colonialismo experimentadas em facetas diferentes por cada um dos personagens do romance.

 

A sobreposição de passado, presente e desejo de futuro ganha concretude pela voz narrativa e pelo corpo de Annie que assume o risco de viver sua inteligência, seu erotismo e o ciclo de sua doença inominada sem negociar trégua ou autocomiseração.

 


Em cenas de descrições límpidas que entrelaçam história privada e social como método de escrita, Kincaid renuncia à culpa, ao vitimismo e ao olhar meramente sociológico para lidar com afetos negativos, como os tiques conservadores e moralistas da classe média caribenha, a ruptura entre mãe e filha e a ida de Annie, aos doze anos, para a Inglaterra.


Os sentidos advindos da ruptura de Annie com uma idealização do relacionamento simbiótico entre mãe e filha repercute em toda a narrativa não como um eco de luto ou um sujeito cindido: a voz da adolescente parece dar corporeidade a um duelo agônico cheio de tensão, ironia e promessas de fuga.

 

Desse imbricamento de desejos contrários entre expectativas da mãe e o comportamento da filha, o texto se investe de sensibilidade crítica à performance de feminilidade que acossa as mulheres, sobretudo na adolescência.


Um livro lançado recentemente no Brasil pela Bazar do Tempo e que convoca um diálogo temático com este romance de Kincaid é a narrativa autobiográfica “O coração que chora e que ri: contos verdadeiros da minha infância” (1999), de Marysé Condé, outra escritora caribenha, que faleceu aos 90 anos na última terça-feira.

 

 

Ambos os textos manejam os efeitos do racismo estrutural ora em um país como Guadalupe, realçando os impactos da presença imperialista da França e do idioma francês, ora em Antígua e Barbuda e Dominica e a projeção retornante à Inglaterra como signos de distinção no imaginário colonial e pós-colonial, possibilitando o conhecimento das dores, dos traumas e do desamparo das narradoras diante de suas famílias burguesas, seus ritos e performances de pertencimento ao mundo dos brancos. São autoras que se valem de recursos narrativos como memória e história social para que vingue em seus projetos literários a força da reconstrução de si em um jogo de valências de alteridade e carga dramática.


A voz narrativa em “Annie John” redimensiona a fantasia e o lúdico do pensamento infantil como trunfo para as negociações de escapes ao sistema hegemônico do imaginário misógino e colonialista caribenho, seja pelo lastro das brincadeiras iconoclastas na escola, pelo palmilhar da cidade como uma pedestre que ocupa lugares interditados pela mãe, pelo lugar da imaginação em seu microcosmo sentimental. Ao compor um universo polifônico, o romance não apenas pactua intertextualidade histórica e cosmogonias familiares dentro de uma família caribenha, mas também elabora e proporciona uma compreensão mais matizada da vida e mundos desses personagens.

 

 

Trecho

“Como se isso não bastasse, ela me informou que eu estava prestes a me tornar uma mocinha, então havia algumas coisas que precisaria fazer diferente. Ela não disse exatamente o que me deixava prestes a me tornar uma mocinha, e isso me deixou feliz, porque eu não queria saber. Atrás de uma porta fechada, fiquei nua na frente de um espelho e me olhei da cabeça aos pés. Eu era tão comprida e ossuda que mais do que preenchia o espelho, e minhas pequenas costelas pressionavam a pele.

 

Tentei puxar meu cabelo rebelde para baixo para que ficasse liso, mas assim que o soltei ele se encolheu de novo. Eu podia ver os pequenos tufos de pelo sob meus braços. E então dei uma boa olhada no meu nariz.

 

De repente, ele tinha se espalhado pelo meu rosto, quase escondendo minhas bochechas, ocupando todo o espaço, de modo que, se eu não soubesse que era eu quem estava ali teria me perguntado quem era aquela garota estranha — e pensar que não pouco tempo atrás meu nariz era uma coisa pequena, do tamanho de um botão de rosa.

 

Mas o que eu poderia fazer? Pensei em implorar à minha mãe para que pedisse ao meu pai para construir um par de grampos nos quais eu pudesse me enroscar à noite antes de dormir e que com certeza reduziriam meu crescimento.”

 

“Annie John”
• De Jamaica Kincaid
• Tradução de Carolina Cândido
• Alfaguara
• 136 páginas
• R$ 69,90

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