A escritora Maria Esther Maciel  -  (crédito: Reprodução/Instagram @mariaesthermaciel)

A escritora Maria Esther Maciel

crédito: Reprodução/Instagram @mariaesthermaciel

Adriano Cirino
Especial para o EM


“Conte a si mesma a história de sua mãe, de forma a entendê-la melhor e se livrar dos sentimentos perniciosos que ela ainda provoca em você”. Ana Luiza, protagonista de “Essa coisa viva” (Todavia), de Maria Esther Maciel, atende o conselho de tia Zenóbia e, confinada em casa na pandemia de Covid, escreve, ao longo de oito meses, uma “carta que não é bem uma carta” para d. Matilde, sua mãe recém-falecida, de quem não foi ao funeral – um misto de “acerto de contas”, confissão e terapia do luto. A bióloga parte de animais, plantas e objetos (aos quais, quando criança, contava histórias no interior mineiro) para reconstituir a relação de ambas – as coisas passadas permanecem vivas na memória.

Leia: Maria Esther Maciel desafia os clichês da maternidade em 'Essa coisa viva'

A destinatária é incerta no além-túmulo. “Você não tem a mínima ideia do que se passa por aqui. Ou consegue ver daí, de onde está?”, questiona-se Ana Luiza. “[...] os mortos podem se lembrar do que viveram?”, ela indaga. “Você nunca desconfiou disso, não é?”, provoca. “Ou talvez tenha feito vista grossa”, pondera.

Ao contrário de “Memórias póstumas de Brás Cubas” (“Obra de finado”), de Machado de Assis, “Essa coisa viva” é obra para finada. Como a Carta ao pai, de Franz Kafka, a carta à mãe jamais será entregue, mas por motivo diverso.

“Eu apanhava por qualquer coisa, sem saber por que estava apanhando. Era como se você quisesse me punir por eu ter nascido”, reflete Ana Luiza, nas primeiras páginas. Do outro lado, D. Matilde “não está mais aqui” para defender-se ou dar sua versão dos acontecimentos: a filha indesejada foi “arrancada antes do tempo” quando a progenitora tinha 17 anos (ela queria um menino e, aparentemente, sofreu de depressão pós-parto).


Álbum, cartas, dicionários, enciclopédias


Já no primeiro capítulo, “Formigas e baratas” (impossível não recordar Clarice Lispector), Ana Luiza vai ao banheiro e depara “com as formigas imóveis no chão” (alegoria, metáfora), tão inexplicáveis quanto seu “choro meio convulsivo [...] na beirada na cama”, depois de aspirá-las com um aparelho. Por associação entre insetos, ela se lembra de uma cena traumática de infância envolvendo baratas, a origem de sua fobia.

Além de um álbum de fotos e um envelope com cartas “anônimas”, a bióloga tem o hábito de consultar dicionários e enciclopédias (até se parece com a autora de “Animalidades” e “Pequena enciclopédia de seres comuns”). Ela oferece definições de “dente”, “fórceps” e “catalepsia”, bem como a história dos sapatos e das bonecas, para depois compará-las com o significado ou valor pessoal dessas coisas. “Para mim, ela sempre foi um meio de transporte para a liberdade”, afirma sobre a bicicleta.

Romance epistolar íntimo, mordaz e poético, “Essa coisa viva” guarda ainda uma revelação dilacerante para o último capítulo. “Juro que durante muito tempo hesitei em mencionar esses episódios”, confessa Ana Luiza. Páginas antes, ela anunciara: “Não sei se vou conseguir ir até o fim do meu relato e chegar aonde quero chegar.”

“Essa coisa viva”
De Maria Esther Maciel
Todavia
128 páginas
R$ 59,90