Maria Esther Maciel:

Maria Esther Maciel: "Aproveitei muitas das minhas lembranças de quando morei no interior de Minas"

crédito: Inês Rabelo/divulgação

“A filha que até hoje não se vê, ou tenta não se ver, no seu rosto.” Eis a narradora de “Essa coisa viva” (Todavia), o mais recente romance de Maria Esther Maciel. Após o ensaio “Animalidades: Zooliteratura e os limites do humano”, a escritora mineira retoma personagens de romances anteriores para promover um poderoso acerto de contas familiar. O lançamento em Belo Horizonte, com leituras de passagens do livro na voz de Adriane Garcia, será neste sábado, a partir de 11h, na Livraria Quixote.

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Com epígrafes de Thomas Bernhard e Sophia de Mello Breyner, o romance tem o tom definido logo nas frases iniciais: “Ontem fez um ano que você morreu. Tentei chorar, mas não consegui.” É a abertura de uma carta “que não é bem uma carta” da botânica Ana Luiza à mãe, Matilde, morta durante a pandemia. Mesmo um ano após o óbito, a filha não consegue superar as lembranças do que fez – e não fez – a mãe, “viva criatura ambígua”.

Nascida e crescida no interior de Minas, em fazenda “sem imponência nem espírito épico, de rusticidade quase lírica” na cidade fictícia de Terra Verde, a personagem cresceu entre cães e vacas, peixes esquivos e porcos dóceis, plantações de milho e feijão, formigas e baratas, “coisas do quintal” e “plantas loucas”, rezas e ervas, castigos e outros atos de perversidade de uma mãe pouco (ou nada) amorosa e muito instável emocionalmente: “Você começava a me atribuir a culpa por todos os reveses de sua vida, incluindo a sua loucura”.

Em um dos pontos altos do livro, Ana Luiza abre o álbum de retratos e descreve fotos que não vemos – mas imaginamos, graças à potência das palavras. “Não há qualquer interação entre nós, nenhum toque, nenhum gesto recíproco de carinho. Por que você não me rasgou desta foto como fez com papai naquela outra, tirada quase uma década antes?”, questiona a filha, em mais uma pergunta sem resposta.

As cicatrizes deixadas pela mãe em Ana Luiza são expostas, sem concessões, e expurgadas ao longo da narrativa. “Busquei, deliberadamente, desestabilizar essa ideia de que toda mãe é uma figura intocável, dotada de um amor incondicional, incapaz de fazer qualquer mal aos filhos. Há mães e mães”, conta Maria Esther ao Estado de Minas. Leia, a seguir, a íntegra da entrevista da ficcionista, ensaísta e integrante da Academia Mineira de Letras ao Pensar.

Como surge “Essa coisa viva”?Surge como um desvio, ou melhor, uma volta meio inesperada a um projeto esboçado por volta de 2010, mas que por força de alguns reveses que vivi ao longo de 2012 e 2013, acabou ficando pelo caminho. O livro teria como narradora-protagonista uma personagem de “O livro dos nomes” chamada Lídia, e seu título seria “O livro das coisas”. Quando, durante a pandemia, consegui retomar o projeto, ele se tornou completamente diferente do que eu imaginara: ao invés de fazer um inventário de coisas para reconstituir a vida de uma mulher atormentada pelo passado familiar, optei por extrair dessa vida uma outra coisa – mais pulsante, mais visceral. Com isso, a própria narradora se tornou também outra, ganhando o nome de Ana Luiza, ainda que certos traços de Lídia e de sua história tenham permanecido no livro atual.

Como acredita que o novo livro se relaciona com as ficções anteriores?Ele se relaciona tanto com “O livro de Zenóbia” quanto com “O livro dos nomes”, ambos situados na região oeste de Minas Gerais, com fortes elementos da vida interiorana e rural. Algumas personagens dessas obras, como a própria Zenóbia, foram reinventadas (ou renomeadas) em “Essa coisa viva”. Também incorporei na narrativa passagens de crônicas que escrevi entre 2011 e 2013, além de reavivar – por meio da narradora – meu apreço pelos dicionários e enciclopédias. De certa forma, a “Pequena enciclopédia de seres comuns” também incide no novo livro, sobretudo por conta da formação de Ana Luíza no campo da botânica.

As plantas e os animais novamente têm destaque em um de seus livros. O que mais a fascina neles?
Sempre tive uma intrínseca relação com a natureza e os outros seres vivos. Foi essa afinidade com o mundo vivo, adquirida na minha infância em Patos de Minas, que me levou a colocar os animais e as plantas em relevo nos meus livros. Não à toa criei personagens biólogas, como Zenóbia e sua sobrinha Ana Luiza, narradora do novo livro. As paisagens naturais nunca deixaram de atravessar meu trabalho, por terem sido muito recorrentes em minha vida. Desde criança, convivi com bichos de várias espécies, estabelecendo com eles vínculos de amizade e solidariedade. Às vezes eu ficava à beira do rio Paranaíba observando os peixes e os girinos. E sempre convivi com muitos animais de estimação, como cães, gatos, coelhos, patos, além de ter morado numa casa com um enorme quintal, cheio de árvores e todos os tipos de ervas. Incorporei essas experiências nos meus livros de poesia e ficção, trazendo-as, reinventadas, para a vida de muitas personagens. Daí elas atravessarem, com força, também a história de Ana Luiza.

Como as suas memórias de quem cresceu no interior de Minas se refletiram nas lembranças de Ana Luiza?
Embora eu tenha moldado a personagem Ana Luiza à luz de vivências de algumas pessoas que conheci pessoalmente anos atrás ou inventei em “O livro dos nomes”, aproveitei também muitas das minhas lembranças de quando morei no interior de Minas. O cenário do romance tem muito a ver com o da minha infância e adolescência, ainda que a história da personagem não seja propriamente a da minha vida. A cidade em que ela nasceu – Terra Verde – foi inventada, mas possui afinidades com as pequenas cidades de minha região mineira.


Digo que Ana Luiza foi construída a partir da combinação de várias referências reais e fictícias. Ela faz parte de uma geração de meninas (e meninos) que sofreu muito com a violência doméstica, numa época em que a educação das crianças podia incluir surras e castigos, sem que isso fosse considerado abuso ou crueldade. Eu sempre quis abordar isso na literatura e cheguei a incluir, em livros anteriores, alguns casos que presenciei na infância ou me foram relatados. Ou seja, as memórias que incidem em “Essa coisa viva” não deixam de ser coletivas, ainda que concentradas em uma personagem específica.

O que foi mais difícil de escrever na complexa relação entre mãe e filha? O sentimento preponderante na visão da filha é o ressentimento?
De fato, a escrita desse livro foi um desafio para mim, pois desde o início eu tinha consciência de que ele ia na contramão do que geralmente se pensa sobre o papel da maternidade na vida de uma filha. Atos de violência na vida familiar sempre foram associados à figura do pai, e eu quis trazer à tona a complexidade de uma relação violenta e extremamente paradoxal entre mãe e filha. O que não deixa de ser um tabu, pelo que pude constatar em minhas pesquisas e conversas com profissionais da área de psicologia.


No meu primeiro ano de faculdade, tive uma colega do norte de Minas que me contou coisas terríveis sobre sua convivência com a mãe, demonstrando um ressentimento que me deixou perplexa, e isso ficou na minha cabeça como um possível tema a ser trabalhado literariamente. Ele apareceu, como já disse, nos meus dois livros anteriores de ficção, mas de forma muito tênue. Agora pude retomá-lo com mais contundência, criando uma narradora que oscila o tempo todo entre o ressentimento, a culpa e a tentativa terapêutica de se livrar desse peso para sempre.

Há, no final do livro, a citação das referências bibliográficas de Ana Luiza. Como as leituras de outros escritores ajudaram a moldar a personagem?
Alguns escritores foram fundamentais para que esse romance se tornasse possível. Ao longo dos anos, fui marcando nos livros que eu lia trechos que pudessem, no momento adequado, iluminar minha escrita e me ajudar a construir a personagem narradora. Como a narrativa é em primeira pessoa, achei interessante associar tais referências literárias às leituras supostamente feitas por Ana Luiza. Ou seja, as próprias citações e remissões feitas por ela acabaram por ser também ficcionalizadas.


Ressalto que os romances de Thomas Bernhard foram fundamentais para o livro, assim como as obras sobre botânica que constam na bibliografia. “Carta ao pai”, de Franz Kafka, também me auxiliou a moldar o relato da narradora, assim como um dos textos que a escritora espanhola Rosa Montero incluiu em “Nós, mulheres”.

A narradora afirma que a carta escrita à mãe “não é bem uma carta” e foi escrita “para aliviar o incômodo que ela está me causando”. Escrever “Essa coisa viva” teve também uma função terapêutica? O que sentiu quando terminou o livro?
A sensação que tive ao terminar o livro foi sobretudo de alívio. Entrar na pele da narradora para sentir seu sofrimento e capturar seus pensamentos não foi fácil. Foi um processo árduo de composição. Eu estava no meio da escrita de um outro romance, totalmente diferente em termos de tema e enredo, quando resolvi retomar o projeto, por tanto tempo adiado, de “Essa coisa viva” e enfrentar essa história de mãe e filha de uma vez por todas. Com isso, pude acabar com as pendências literárias, as coisas deixadas pelo caminho. Nesse sentido, o livro não deixou de ter também uma função terapêutica, pois me permitiu não apenas lidar com um tema que sempre me intrigou (ou atormentou), como também dar um novo rumo para a minha literatura.

A mãe narrada pela filha não é, em nenhum momento, idealizada ou sinônimo dos conceitos edificantes que costumam ser atribuídos à maternidade. O distanciamento foi deliberado?
Sim, existe um conceito muito idealizado de maternidade, o que torna qualquer gesto de crítica ou recusa dessa idealização uma afronta. Busquei, deliberadamente, desestabilizar essa ideia de que toda mãe é uma figura intocável, dotada de um amor incondicional, incapaz de fazer qualquer mal aos filhos. Há mães e mães. Como já expus aqui, conheço histórias controversas – e cruéis – que envolvem relações entre mães e filhas. E sei também o quão maravilhosas muitas mães são. Não se pode generalizar o que é múltiplo, diverso. No romance existem, inclusive, outras figuras maternas diferentes de Matilde, mãe de Ana Luíza. São mães postiças que deram à narradora o amor e a atenção que a legítima não pôde oferecer. Achei importante relativizar o caráter sagrado da maternidade, explorar seus matizes e contradições.

TRECHOS

“Você recebeu heranças, e não foram poucas, dissipando tudo em curto tempo, não apenas com gastos inúteis e excessivos, mas também com esses gestos de generosidade seletiva e, quase sempre, interessada. As pessoas ficavam nas suas mãos, você faria o que bem queria com elas, e elas então faziam o que você ordenava. Mesmo tendo se empenhado, você, infelizmente, não logrou me corromper, embora tenha feito algo quase sempre tão pernicioso quanto um suborno: conseguiu me afastar de mim mesma, tal como tinha afastado meu pai de si próprio, em ampla e preocupante medida. Por conta disso, durante muito tempo deixei de saber o que ou quem eu era realmente, se era boba ou corajosa, feia ou mais ou menos bonita, indigna de seu amor ou merecedora dele. E não me pergunto o que quero dizer com isso. Como vê, ainda sou cheia de incertezas. Ou melhor, a incerteza é parte do meu desígnio.”

“Não dava para me lembrar da sua promessa quando eu passava em frente àquela escadaria enorme que dá para a entrada principal. Vim a saber que as escadarias dessa igreja, hoje santuário, foram projetadas e construídas por um holandês chamado Verenfrido Vogels, nos primeiros anos do século 20. Um dia, parei diante da escadaria para contar os degraus: me perdi um pouco, mas cheguei a quase quarenta. Quanto tempo eu teria gastado para percorrer todos eles de joelhos? O que teria sobrado de mim depois disso?”

“Essa coisa viva”
• De Maria Esther Maciel
• Todavia
• 128 páginas
• R$ 59,90
• Lançamento neste sábado (03/02), às 11h, com autógrafos da autora e leituras de Adriane Garcia, na Livraria Quixote (R. Fernandes Tourinho, 274, Savassi)