É preciso romper a lógica da polarização
A polarização sobrevive aos reveses de seus líderes e, em certos momentos, parece até se fortalecer com eles
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A persistência da polarização política no Brasil já não é apenas um fenômeno eleitoral: tornou-se um fator estrutural de corrosão da coesão nacional. Os dados recentes do Datafolha revelam um país rigidamente dividido entre lulistas e bolsonaristas, mesmo depois de eventos extremos – prisão, condenações, desgaste institucional – que, em democracias mais estáveis, tenderiam a abrir espaço para alternativas políticas. No Brasil, ocorre o inverso: a polarização sobrevive aos reveses de seus líderes e, em certos momentos, parece até se fortalecer com eles.
Essa dinâmica indica que o debate político nacional pouco avançou na última década. A disputa permanece centrada menos em projetos de país e mais na rejeição mútua entre dois polos que se retroalimentam. Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo liderando pesquisas, sustenta seu capital eleitoral sobretudo por força pessoal: afinal, apenas um terço do eleitorado se identifica com a esquerda ou centro-esquerda. Do outro lado, Jair Bolsonaro, condenado por tentativa de golpe de Estado, continua a organizar politicamente um campo expressivo da sociedade, agora transferindo protagonismo ao filho Flávio Bolsonaro, numa aposta explícita na manutenção da polarização como estratégia de sobrevivência.
Esse impasse convém eleitoralmente aos extremos, mas cobra um preço alto da governabilidade. Na política econômica, convivem uma política fiscal expansionista, orientada por cálculos eleitorais de curto prazo, e uma política monetária severa, que mantém juros elevados por falta de credibilidade fiscal. O resultado é um círculo vicioso: inflação que cede lentamente, dívida crescente e um custo financeiro que estrangula o investimento e limita o crescimento. Não há coordenação porque não há consenso mínimo sobre prioridades nacionais, apenas a lógica do “nós contra eles”.
Nesse ponto, a reflexão filosófica ilumina o presente. Platão e Aristóteles escreveram, no século 4 a.C., quando a pólis grega dava sinais de exaustão política. Sua obra não inaugurou o pensamento grego, mas marcou o início da tradição filosófica ocidental justamente num momento de decadência da vida cívica. O problema que emergiu então – como viver em sociedade quando a política não oferece sentido coletivo – ecoa de forma perturbadora no Brasil atual. A política transforma-se em mera disputa de poder, e o pensamento passa a ser apenas “pós-pensamento”, racionalização tardia de decisões tomadas por impulsos, afetos e identidades tribais.
A polarização contemporânea produz efeito semelhante: separa pensamento e ação, esvazia o debate programático e reduz a cidadania à adesão emocional a líderes. Nesse ambiente, projetos nacionais amplos tornam-se inviáveis. O país foi capaz, em outros momentos históricos, de construir consensos mínimos – na redemocratização, na estabilização monetária, na Constituição de 1988 – mesmo em contextos de conflito. Hoje, porém, a política parece prisioneira de uma lógica plebiscitária permanente, em que c ada eleição se apresenta como um “tudo ou nada” existencial.
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Romper essa engrenagem exige mais do que nomes novos; exige uma revalorização do espaço do centro democrático como lugar de formulação, não de mera acomodação. Significa recolocar temas estruturais – responsabilidade fiscal, desenvolvimento sustentável, redução das desigualdades, fortalecimento institucional – acima da exploração sistemática do medo e da rejeição. Sem isso, o Brasil seguirá oscilando entre dois polos que se alimentam mutuamente, incapazes de oferecer um projeto nacional capaz de recompor o consenso mínimo necessário à vida republicana. A superação da polarização, portanto, não é um luxo intelectual: é condição para que a política volte a ter sentido coletivo e a democracia recupere sua capacidade de orientar o futuro.