Recomeçar sempre
Recomeçar é, pois, um confronto existencial com princípios que estão acima dos desejos pessoais
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Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Às vésperas de um novo ano civil multiplicam-se os augúrios de felicidade e prosperidade: um turbilhão de votos que pode se configurar em uma onda demagógica e repetitiva, chegando à esterilidade, em razão de saudações que mais parecem clichês. A contagem de um novo ano civil, para além dos brindes e dos fogos, é uma oportunidade para recomeços. E constitui um singular caminho para recomeçar dedicar-se a um balanço sobre o ano que termina, delineando novos propósitos e compromissos. É hora de alimentar a disposição de recomeçar, pois, na vida de cada pessoa, é preciso recomeçar sempre, para poder avançar. O horizonte de novos propósitos deve ser alimentado por indicativos relevantes, contemplando metas que ultrapassem fronteiras domésticas para ter incidência na vida comunitária, cidadã e sociopolítica. Por isso mesmo, a disposição para se viver recomeços deve considerar uma dimensão moral indispensável, aquela que ilumina e configura a conduta de cada um no exercício de suas responsabilidades e nos seus desempenhos profissionais. Não se trata simplesmente de buscar alcançar os próprios propósitos a todo custo, sobretudo quando se considera a tendência humana de estreitar-se, por fraqueza, nas próprias ambições, abrindo mão da ética para obter enriquecimentos e outras formas ilusórias de conquistas.
Recomeçar é, pois, um confronto existencial com princípios que estão acima dos desejos pessoais – que, muitas vezes no afã de conquistá-los, pode exigir sacrifícios injustos com prejuízos ao bem comum e à dignidade inviolável do ser humano.
Os cristãos são desafiados a traçar seu programa de vida e seus propósitos no horizonte de uma virtude: a esperança, para não correr o risco de se degringolar nas descidas que significam atrasos sociais e políticos, impedindo avanços civilizatórios, respeito a direitos fundamentais, adequada configuração cultural de uma sociedade. Em 2025, os cristãos católicos viveram um ano jubilar, com repercussões no exercício da cidadania. Esse ano jubilar convidou todos os seres humanos a se qualificarem como peregrinos de esperança. A virtude da esperança, na fé cristã, é um tesouro de perspectivas, uma escola formativa e de correção, uma luz para clarear caminhos, gerando, em abundância, uma moralidade indispensável. Essa moralidade pode fecundar a exigência de se recomeçar sempre. Um recomeço com a nobreza de propósitos sem jamais enjaular-se na pequenez de interesses meramente pecuniários, na ambição egoísta por poder político-institucional.
A virtude da esperança se torna uma luz luzente nos caminhos da humanidade. Uma virtude indispensável que permite vencer os cansaços do caminho, pela certeza da salvação que é garantida com o Natal do Salvador. O nascimento de Jesus torna fidedigna a esperança do povo de Deus, uma luz nova para a humanidade. Aqueles que creem se distinguem por saber que o futuro não é garantido pelo que se possui materialmente, nem pelo poder, reconhecimento social e institucional que se conquistou a qualquer preço. A esperança cristã, essencial aos recomeços na vida de cada pessoa, leva à lucidez de se buscar contribuir com a edificação de uma sociedade mais justa e solidária, enquanto se caminha rumo a um futuro que ultrapassa os limites do tempo deste mundo, que corre velozmente. Como se conquista essa esperança, indispensável pela sua força de revestir corações com valores e princípios que podem qualificar o exercício da cidadania? A esperança cristã se conquista pela experiência do encontro com o Menino-Deus, razão da festa deste tempo do Natal. Conhecer o verdadeiro Deus é fecundar-se da esperança que não decepciona, que baliza e ilumina, de modo qualificado, os propósitos dos recomeços, tornando-os melhores.
A esperança cristã alimenta o compromisso pelo bem de todos, fecunda o desejo de contribuir para o desenvolvimento integral, cura ignorâncias cristalizadas pelas superficialidades na regência de escolhas pessoais, Uma esperança que concede à sociedade cidadãos e cidadãs que fazem diferença, na cultura, na arte, na educação, na religiosidade e no compromisso social, efetivando e apoiando o que supera os vergonhosos cenários de exclusão. Planejar o recomeço a partir de Deus, em Cristo, o Verbo encarnado, aquele que revela o rosto de seu Pai, o Pai de todos, impulsiona a fraternidade, fecunda sonhos e faz eleger o bem comum como prioridade, assumindo a condição de operário de um mundo novo. A conquista maior é o consenso em torno de uma irmandade que inspire diálogos e ações capazes de ajudar a superar guerras de todo tipo. Recomeçar, assim, é admitir a necessidade de uma nova e lúcida concepção de mundo, meta a ser alcançada pela experiência do encontro e do diálogo frequente com uma pessoa: Jesus Cristo. Sem esse encontro e diálogo cada recomeço está fadado ao fracasso, pelo risco dos aprisionamentos em horizontes estreitos que levam a frustrações.
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Recomeçar é uma oportunidade singular de exercitar-se na arte de saber viver e morrer retamente, porque o tempo passa e tudo termina, permanecendo apenas o eterno da verdadeira e fidedigna esperança. Importa planejar e recomeçar à luz da esperança que não decepciona. Pertinente é a palavra do poeta Thiago de Mello, em Memória da Esperança, inspirando recomeços: “Na fogueira do que faço por amor me queimo inteiro. Mas simultâneo renasço para ser barro do sonho e artesão do que serei. Do tempo que me devora nasce a fome de ser. Minha força vem da frágil flor ferida que se entreabre resgatada pelo orvalho da vida que já vivi. Qual a flama que darei para acender o caminho da criança que vai chegar? Não sei. Mas sei que já dança, canção de luz e de sombra, na memória da esperança”.