A violência que se esconde em casa
As notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes em Belo Horizonte cresceram, entre 2014 e 2024, mais de 200%
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Luciano Moreira de Oliveira
Promotor de Justiça
Lucas Caetano Pereira de Oliveira
Sociólogo, assessor do MPMG
Dados obtidos por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), que reúne os eventos de notificação compulsória pelos profissionais de saúde, revelam que as notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes em Belo Horizonte cresceram, entre 2014 e 2024, mais de 200%. Foram contabilizadas, no período, 4.359 notificações, que passaram de 223, em 2014, para 681, em 2024.
As informações constam de relatório elaborado pelo Ministério Público de Minas Gerais, que também analisou dados dos Registros de Eventos de Defesa Social (REDS), os chamados boletins de ocorrência. Ao todo, foram identificados 4.202 registros no período, sendo indicadas 4.532 vítimas. Além da explosão das notificações pelos profissionais de saúde, o relatório apontou características relevantes sobre esse fenômeno, que podem auxiliar famílias, sociedade e estado a compreenderem a violência sexual contra crianças e adolescentes e, principalmente, protegê-las.
Segundo os dados do SINAN, 81,6% das vítimas são do sexo feminino. A maioria (31,3%) tem idade entre 10 e 14 anos. Números compatíveis com os informados pelas forças de segurança, que indicam a prevalência de meninas (80,5%) e de vítimas com idades entre 9 e 13 anos (47,7%).
Crianças e adolescentes não precisam ir longe ou a lugares ermos para serem abusadas. Na maioria das vezes, o perigo está em casa. Nesse sentido, 79,1% dos fatos registrados pelas forças de segurança entre 2014 e 2024 ocorreram em residências e a maior parte (36,6%) no período da tarde. Em sua esmagadora maioria, os abusadores são do sexo masculino (94,3%), pessoas entre 18 e 39 anos (45,2%), que vitimaram, principalmente (25%), filhos e enteados.
Embora a literatura mostre uma grande subnotificação dos casos de violência sexual em geral (apenas 8,5% dos estupros são noticiados), as informações coletadas permitem inferir que a violência sexual contra crianças e adolescentes ocorre principalmente no ambiente doméstico, predominam vínculos de confiança e autoridade entre agressor e vítima e são majoritariamente baseadas no gênero.
Características que impõem desafios importantes, mas também indicam caminhos para a intervenção do Estado e da sociedade para a proteção das vítimas. Essa escandalosa realidade deve ser enfrentada de forma intersetorial. Por isso, atores das redes de serviços de saúde, educação e assistência social têm papel relevantíssimo na identificação e proteção das vítimas.
Na área da saúde, os agentes comunitários, presentes nos territórios, com atuação capilarizada e laços com a população têm grande potencial de atuação. Professores, por sua vez, costumam contar com a confiança dos estudantes, que se sentem protegidos na escola para noticiarem situações de violência a que estão expostos. Igualmente, profissionais atuantes no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) têm contato estreito com famílias vulneráveis, que vivem em ambientes onde ocorre a maior parte dos casos de violência contra crianças e adolescentes.
Por fim, os Conselheiros Tutelares precisam estabelecer elos fortes com as comunidades, facilitando o recebimento de denúncias e proporcionando respostas rápidas às violações de direitos identificadas.
A Constituição estabelece que é dever da família, da sociedade e do estado proteger as crianças e adolescentes e colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Esse cuidado começa em casa. E exige um olhar atento para nossas crianças e adolescentes, pois o local que é para ser de acolhimento pode se transformar em lugar de violência e opressão.