O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou ontem a medida provisória que cria a CNH do Brasil, com novas regras para obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). A iniciativa tem como objetivo modernizar e baratear o processo para tirar a carteira de motorista no país. Entre as novas regras está o curso teórico gratuito e a flexibilização das aulas práticas. Com a entrada em vigor das medidas, donos de autoescolas temem que a procura pelos serviços tenha queda ainda maior. Além disso, especialista em segurança viária ouvido pelo Estado de Minas teme que a flexibilização deixe o cenário no trânsito ainda mais complexo que o atual.
O governo federal estima que cerca de 20 milhões de brasileiros dirigem sem habilitação atualmente. O principal motivo seria o custo elevado para tirar a CNH, que pode chegar a R$ 5 mil em alguns municípios, aliado à burocracia para concluir todas as etapas do processo. A expectativa do Ministério dos Transportes é que o novo modelo reduza em até 80% o custo para tirar o documento, além de diminuir a demora no processo de renovação da carteira.
A medida provisória prevê curso teórico gratuito e digital, flexibilização das aulas práticas e possibilidade de acompanhamento por instrutores autônomos (confira todas as mudanças na página ao lado). Durante o evento, no Palácio do Planalto, foi lançada também a nova versão do aplicativo da CNH, que deve substituir a Carteira Digital de Trânsito (CDT). No início de dezembro, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) aprovou a proposta por unanimidade.
INCERTEZA
Lúcio Neto é proprietário da Autoescola Nova Sion, localizada na Avenida Nossa Senhora do Carmo, Bairro Sion, Região Centro-Sul de BH. Ele diz que a demanda na empresa já caiu cerca de 70% desde que a possibilidade de mudanças foi anunciada. Segundo Neto, há dois perfis de público que procuram os serviços de sua autoescola: alunos de classe média e de renda mais baixa. “Cerca de 25% do meu público é de origem mais humilde”, afirma. Ele acredita que, apesar da flexibilização, alguns alunos, especialmente os com maior poder aquisitivo, vão preferir continuar com a formação tradicional.
“Estou no ramo há 25 anos. Um pai vai correr o risco de ensinar o filho e se envolver em um acidente? É muito difícil ver um carro de autoescola envolvido em um acidente. O instrutor tem todo um aparato para a proteção dele e do aluno”, pontua.
O empresário afirma que os Centros de Formação de Condutores (CFCs) não são contra mudanças no processo para tirar a habilitação, mas reclama que a questão não foi debatida com o setor e técnicos não foram ouvidos para que a decisão fosse tomada.
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“Tem um projeto de 2014, que está engavetado em Brasília, que prevê a utilização de carros automáticos, redução de carga horária de legislação para 20h e dez aulas de direção. Quem precisar de mais aulas, pode fazer. As autoescolas não são contra baratear os custos. Não seria nem inteligente, porque se for mais barato, a demanda será maior”, avalia.
Ele também diz que haveria outras alternativas para baratear o custo da habilitação. “Os exames médico e psicotécnico poderiam ser feitos pelo SUS ou por um convênio, além de eliminar as taxas do Detran. Isso corresponde a cerca de 40% a 45% do custo da CNH. As autoescolas não são as vilãs da história.”
Com as novas regras, Neto teme que a situação dos CFCs fique ainda pior. “Oitenta por cento das autoescolas de Belo Horizonte não vão conseguir pagar o 13° dos funcionários, que contam com isso porque têm seus compromissos. Para recompor esse prejuízo, vamos levar o ano que vem todo. Isso para autoescolas bem estruturadas financeiramente. Muitas vão fechar, infelizmente. Esse é o cenário”, lamenta.
O Estado de Minas entrou em contato com o Sindicato dos Centros de Formação de Condutores de Minas Gerais (Sindicfc-MG) para saber quais medidas serão adotadas com a entrada em vigor das novas regras, porém não obteve retorno. Na semana passada, após a aprovação das medidas, pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), o presidente da entidade, Alessandro Dias, informou que ingressaria com ações para suspender e revogar a resolução do Contran, assim que fosse publicada.
Dono de autoescola em BH, Lúcio Neto diz que já amarga queda na procura, mas espera recuperação: "Um pai vai correr o risco de ensinar o filho e se envolver em um acidente?"
CENÁRIO PREOCUPANTE
O diretor científico da Associação Mineira de Medicina do Tráfego (Ammetra), Alysson Coimbra, diz que a segurança viária no país não tem sido uma prioridade. “Há mais de 10 anos as políticas públicas deixaram de priorizar a vida no trânsito. Os números mostram isso. As estatísticas revelam uma estagnação no número de mortos, o que significa que não avançamos. E quando um país não avança, ele retrocede.”
Segundo ele, esse é um cenário temerário para discutir novas regras e flexibilizações. “Hoje estamos colhendo consequências diretas da flexibilização promovida em 2019. Houve redução de exigências, aumento do prazo de validade da CNH e diminuição de .barreiras de proteção”. O resultado já está presente: mais acidentes, vítimas e fragilidade no sistema de formação Coimbra ressalta que, diante da falta de uma educação para o trânsito consistente, ficam a dúvida e a preocupação se a população está realmente preparada para buscar uma aprendizagem teórica e prática por conta própria.
“Ambientes adequados de ensino são fundamentais para a assimilação de conteúdos e para a mudança de comportamento. Quando falamos em treinamento, não estamos falando apenas de preparar para uma prova. O treinamento prepara para a vida real de direção. Treinar uma manobra e repeti-la garante aprovação no exame, mas será que reduzir horas de prática e inserir menos tempo em um trânsito real não formará motoristas ainda mais vulneráveis, que se surpreenderão com situações complexas e não saberão reagir?”, questiona.
Ele lembra que hoje os motociclistas fazem praticamente toda a preparação em motopistas, executando manobras isoladas. “E o Brasil registra, justamente entre motociclistas, algumas das maiores taxas de acidentes e mortes do país. A realidade da rua é dura, imprevisível e não perdoa motoristas que não estão preparados”, analisa.
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Por isso, segundo o especialista, qualquer proposta de flexibilização precisa ser tratada com responsabilidade. “Estamos falando de vidas, de famílias e de um país que ainda está muito distante de atingir um padrão mínimo de segurança viária. A solução nunca será reduzir exigências e desconsiderar o risco, mas qualificar cada vez mais a formação e a saúde dos motoristas, porque trânsito seguro não se faz com atalhos ou flexibilizações.”
“Treinar uma manobra e repeti-la garante aprovação no exame, mas será que reduzir horas de prática e inserir menos tempo em um trânsito real não formará motoristas ainda mais vulneráveis?”
Alysson Coimbra
Diretor científico da Associação Mineira de Medicina do Tráfego (Ammetra)
