Como se rouba na estrada? Ladrões dividem tarefas perseguindo caminhoneiros
Quadrilhas especializadas têm organização sofisticada, tecnologia para mapear cargas valiosas e sabotar rastreadores e mercado clandestino garantido
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Brumadinho, Florestal, Francisco Sá, Grão Mogol, Itatiaiuçu, Montes Claros, Sabará e São Gonçalo do Rio Abaixo – “Ultimamente, não adianta ter câmera, nem alarme em armazéns e galpões. Os bandidos vêm de touca, boné e óculos cobrindo a cara. Quando tive meu caminhão arrombado e furtado, em Patos de Minas (na região mineira do Alto Paranaíba), as imagens não adiantaram nada.” O desabafo do caminhoneiro paranaense Claudinei Aparecido de Menezes, de 51 anos, expõe uma das grandes vulnerabilidades do transporte das cargas que abastecem mercados, lojas e portos e aeroportos para comércio externo no Brasil. Um setor que sofre com os sinistros de trânsito, mas do qual a ação de ladrões também cobra um alto pedágio.
Um dos lugares que Claudinei mais evita enquanto transporta produtos pelo Brasil é a BR-251, no Norte de Minas, trecho temido por transportadores. “Se o seu caminhão tiver problemas e precisar parar no posto, é furto; no trecho, não durma no caminhão ou você será roubado, com certeza”, reforça o caminhoneiro Romildo Almeida Rodrigues, de 56, de Montes Claros.
Carretas e caminhões levados, motoristas ameaçados, roubos e furtos são um risco para quase dois terços das mercadorias brasileiras que escoam pelo meio rodoviário, segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT). Crimes que, segundo a consultoria internacional de gerenciamento de riscos e segurança logística ICTS Security, representaram em 2024 um prejuízo de R$ 1,217 bilhão.
A forma de atuação das quadrilhas tem sido objeto de estudo dos profissionais de segurança pública, vigilância privada e seguradoras, como descreve o coronel Carlos Júnior, especialista em segurança de Estado. “O roubo de carga em todo o país atua por meio de uma teia criminosa de equipes com funções específicas de apoio, seja do crime organizado, seja de quadrilhas locais, e comerciantes receptadores”, afirma.
Cúmplices internos
Em quase todas as ações organizadas contra o setor no Brasil ocorre a participação de pessoas aliciadas nas empresas e processos, estima Carlos Júnior. “São informantes que se encontram em várias etapas, desde a fabricação e armazenagem ao transporte da carga e à manutenção dos veículos. Apontam os carregamentos mais valiosos, muitas vezes também cooptam motoristas e 'chapas' (ajudantes). Há também os golpes do seguro, quando donos das cargas facilitam roubos para faturar de 80% a 90% com o valor da indenização e, depois, com a venda criminosa”, aponta o coronel.
Os demais integrantes atuam como batedores que alertam sobre a presença da polícia ou segurança nas estradas, em ações que usam até drones. “Quem ataca a carreta ou caminhão são os ‘puxadores’ ou ‘cavalos’, que interceptam os veículos de carga nos pontos vulneráveis, rendem o motorista, usam equipamentos como ‘capetinhas’ e ‘chupa-cabras’ para anular o rastreamento e desviam o carregamento para armazéns e caminhões que os esperam em outros locais”, descreve o especialista. Muitas vezes, o motorista é feito refém enquanto a carga viaja para destinos acertados por intermediários chamados de “corretores”. Estes fazem a ponte entre comerciantes receptadores e as quadrilhas.
Segundo a ICTS Security, a maior fatia das perdas de cargas em 2024 (86%) concentrou-se no Sudeste, seguido pelo Nordeste (11,7%). A consultoria destaca a ampliação de riscos em relação a 2023. “(Há um) avanço expressivo no Nordeste, acima de 40%, que sugere uma migração da criminalidade para rotas menos protegidas, como as que cortam os estados de Pernambuco, Bahia e Maranhão”, informa a ICTS.
Minas lidera em ataques
Crimes de oportunidade contra as cargas, os furtos no Brasil são mais numerosos, e chegaram a responder por 6.270 ocorrências no país, de acordo com levantamento da reportagem do Estado de Minas sobre dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF), entre 2022 e agosto de 2025. Já os roubos – crimes com emprego de violência ou grave ameaça – chegaram a 4.608 registros nas rodovias federais.
Minas Gerais é o estado onde mais carregamentos que passaram pelas rodovias federais foram roubados, somando 1.749 ocorrências (38%). Em seguida, vêm Paraná (614), Rio de Janeiro (469), São Paulo (452) e Bahia (341). No furto de cargas, a dominância mineira é ainda mais assustadora. O estado registrou 3.539 ocorrências (56,4%), com Paraná (855) e São Paulo (614) completando o ranking de três estados mais críticos.
Minas também ocupa o primeiro lugar em roubos dos próprios veículos de carga, com 671 registros (29,7% do Brasil). São Paulo (471) e Paraná (247) aparecem na sequência. A ICTS posiciona o estado como o terceiro em prejuízo financeiro por roubos (14,2% do valor total nacional), atrás de São Paulo (47,2%) e Rio de Janeiro (18,7%).
A CNT classifica o “crime organizado nacional e/ou transnacional” como o segundo maior risco para o setor no Brasil – o primeiro são as políticas legais, normativas, tarifárias, fiscais ou tributárias, com 96% dos especialistas o classificando nos níveis “extremo” ou “alto”, segundo a Análise de Grandes Riscos do Setor de Transporte (CNT 2023).
“O risco corresponde a roubos, perdas e danos a cargas, pessoas, infraestruturas ou ativos estratégicos de transporte ou restrições à operação causados por práticas ilegais de organizações criminosas, de alcance nacional ou transnacional, motivadas pelo lucro”, define a confederação.
A preferência dos ladrões
Os alvos prioritários dos criminosos são produtos de fácil revenda. Nos roubos (ações violentas), 51% das cargas recuperadas conhecidas eram de alimentos, seguidas por eletroeletrônicos (12%) e bebidas (10,6%). A preferência nos furtos é parecida: alimentos (61,4%) e bebidas (17,5%).
“Um dos grandes problemas é o receptador. Ele incentiva esse tipo de crime. Cargas de venda fácil, como as de alimentos e bebidas, até de eletrodomésticos e eletrônicos, encontram mercado facilmente e por isso se tornam lucro rapidamente. Isso é muito presente em ponto de comércio do interior, já distantes das rodovias, e no Rio de Janeiro, onde estradas cortam comunidades”, destaca o diretor de Operações da PRF, Marcus Vinícius de Almeida.
A análise da ICTS Security identifica padrões sazonais e horários de maior vulnerabilidade para os ataques. “Os períodos de maior movimentação econômica, como os meses ligados a datas comemorativas e ciclos de alto consumo, registram aumentos significativos nos casos. No Sudeste e Nordeste, há concentração de ocorrências especialmente por conta de eventos como Dia das Crianças, Black Friday e Natal”, informa a consultoria.
Mais da metade dos crimes se concentram entre as 5h e 12h, sendo os corredores de maior risco, segundo a consultoria, rodovias estratégicas, como a BR-116 (eixo Rio/SP/RS), a BR-381 (MG/SP) e a BR-040 (RJ/MG/DF), “interligando polos industriais, zonas portuárias e áreas metropolitanas”.
A temida BR-381
A BR-381 é a estrada com mais crimes de carga em Minas Gerais e no Brasil. Segundo dados da PRF, a rodovia somou 655 roubos e 1.633 furtos de 2022 a agosto deste ano. O trecho Sul (Fernão Dias) concentra 53,3% das ocorrências. Entre os municípios com mais registros aparecem São Gonçalo do Rio Abaixo (51), Sabará (42) e Antônio Dias (40), com foco em alimentos, bebidas e eletrônicos.
Os pontos críticos para furtos na BR-381 são Oliveira (98 ocorrências), Antônio Dias (96), Cambuí (95) e Extrema (95). A estrada também lidera em roubos de veículos pesados, com 158 ocorrências. Nesse caso, o trecho de Extrema, no Sul de Minas, é o ponto mais perigoso, com 42 ataques de ladrões.
A BR-251, no Norte de Minas, é outro eixo crítico. Soma 232 roubos de cargas e 49 roubos de veículos. Cachoeira de Pajeú (53) e Grão Mogol (48) são os piores municípios para esses crimes. Os mesmos municípios, além de Salinas, lideram os roubos de veículos na estrada, indicando atuação de quadrilhas especializadas na região.
Para o caminhoneiro Romildo Almeida, de 56, as paradas em Grão Mogol são de alto risco. “Eu aconselho todo caminhoneiro: se você tiver o caminhão quebrado ou tiver de pernoitar à beira da estrada, não fique dentro do veículo naquele trecho, ou muito provavelmente será roubado”, alerta. Mais adiante, o perigo é entre Salinas e Divisa Alegre (encontro com a BR 116/Rio-Bahia), onde não há cobertura por telefonia.
A BR-116 em Minas, que também corta Cachoeira de Pajeú, soma 216 roubos de carga e 361 furtos. Já a BR-040 se destaca pelo alto número de furtos (514), com Itabirito sendo o município com mais registros (148).
Assaltos no mapa nacional
No Paraná, segundo no ranking de roubos (614) e furtos (855), os crimes se dividem. A BR-116 lidera em roubos, tendo caminhões em viagem como alvos, enquanto a BR-277, que faz a ligação com o porto de Paranaguá, lidera em furtos, com o foco no município de mesmo nome, onde grande volume de veículos para, pousa, transborda, é reparada e acaba tendo cargas, componentes e valores sendo alvo de ladrões. Em São Paulo, a BR-116 é o epicentro do crime no estado, concentrando 411 roubos de carga, 584 furtos e 296 roubos de veículos. O Rio de Janeiro, terceiro em roubos (469) e segundo em perdas financeiras (18,7%), tem na BR-040 (125 ocorrências) e na BR-116 (112) seus pontos críticos. A Bahia, que ilustra a migração do crime para o Nordeste, é a quinta em roubos (341). As BR-101 (165) e BR-116 (129) foram as mais visadas.
Roteiro de viagem
Na segunda reportagem da série “Cargas de risco”, a equipe do Estado de Minas mapeia e caracteriza o prejuízo bilionário ao setor de transporte rodoviário devido à ação de quadrilhas e do crime organizado. A primeira reportagem analisou os sinistros de trânsito, mapeando os pontos mais letais das rodovias federais e as causas de milhares de mortes, como a falha humana e a velocidade excessiva.