Mulher trans, Alice Martins Alves, de 33 anos, foi agredida na madrugada de 23 de outubro em uma avenida na Savassi, área badalada da Região Centro-Sul de Belo Horizonte, e morreu semanas depois, em 9 de novembro, por complicações dos ferimentos sofridos. Um assassinato que reflete um cenário de dupla violência, observado em Minas e no Brasil: transfobia e machismo, como apontam ativistas.


Não só Alice, mas Christina, Jeane Lui, Gabi Campbel, Alana, Pâmela, Dandara, Sofia, Nik e Marcinha: de dez casos de homicídio de pessoas trans em Minas Gerais noticiados pelo Estado de Minas entre junho de 2024 e outubro deste ano, todas as vítimas eram mulheres trans ou travestis. Essa população representa mais de 90% das pessoas trans vítimas de homicídio, além de serem alvos frequentes de violência doméstica.


De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no ano passado 122 pessoas da comunidade foram mortas no Brasil. Desse total, 117 eram mulheres trans ou travestis, o que representa 95%, conforme o “Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras - 2024”, da Antra. O documento usa dados extraoficiais. Em 2023, esse recorte, chamado pela Antra de “transfeminicídio”, representou 93% dos homicídios totais, com 136 casos de 145.


O levantamento realizado por Sayonara Nogueira, travesti e secretária de Comunicação da Rede Trans Brasil, feito a partir do monitoramento de notificações em meios de comunicação, indica que o cenário neste ano se mantém. De janeiro a outubro, foram registrados 61 homicídios de pessoas trans, sendo 57 vítimas de identidade de gênero feminina. Os dados revelam ainda que, das sete ocorrências em Minas Gerais, todas envolveram mulheres trans ou travestis.


“A gente tem uma incidência muito grande tanto do machismo quanto do patriarcado no país. Então, quanto mais próximo dessa construção feminina, maior vai ser a violência”, afirma Sayonara Nogueira, que entende esse cenário como herança do período colonial.

Para Evellyn Loren, mulher trans que preside o coletivo Trans Viva, a violência sofrida por mulheres trans e travestis está associada com a forma com a qual os homens as veem. “O corpo da mulher trans é desejado, mas eles não assumem da mesma forma que assumem uma mulher cis”, afirma ela em referência ao termo cisgênero, que se refere a pessoas que se identificam com o sexo de nascimento. Evellyn entende que as agressões podem ser uma maneira de os homens esconderem ou negarem a atração que sentem.


Violência doméstica

Uma das vítimas dessa discriminação movida por violência e machismo foi Christina Maciel Oliveira, mulher trans de 45 anos, espancada e morta pelo ex-companheiro em plena luz do dia na Rua Padre Pedro Pinto, Região de Venda Nova, em Belo Horizonte, em 20 de outubro.


Estefane Rodrigues de Souza Nogueira, mulher trans e coordenadora municipal da Aliança Nacional LGBTI+ em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de BH, também foi vítima de violência doméstica, mas sobreviveu. Não sem sequelas. “Ele acabou com a minha vida. Eu não saio mais de casa, vivo com medo. Tomo remédios para ansiedade, para não ouvir vozes. Não consigo trabalhar”, conta, com a voz embargada.


O mesmo relata uma mulher trans de 25 anos, moradora da Região do Barreiro, em BH. Com medo de ser identificada, ela pede anonimato. “Ele me deu três facadas. Foram três anos de relacionamento, em que eu pensei que tinha encontrado o amor. Quando tudo acabou, comecei a ser agredida dia sim, dia não. Procurei a polícia diversas vezes e mal consegui atendimento. Cheguei a cogitar tirar a própria vida. Só depois de muito insistir, fui amparada pela delegacia. Um ano depois, ainda fujo dele. Já me mudei três vezes”, relata.


Lei Maria da Penha

No primeiro semestre de 2022, uma decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) também deve ser aplicada aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transgênero. No entanto, a efetivação do direito parece ainda depender de quem faz o atendimento à vítima.


Um dos maiores problemas relatados por mulheres trans é a falta de preparo e sensibilidade de agentes públicos. Perguntas invasivas sobre cirurgia de redesignação sexual, o não respeito ao nome social e a confusão entre identidade de gênero e orientação sexual são situações constantes. “Se a mulher trans não tem o nome retificado, muitas vezes é negado o atendimento. É violência institucional, que perpetua o medo e a exclusão”, avalia Sayonara Nogueira, da Rede Trans.


A performer e professora Dodi Leal, travesti de 40 anos que mora em Belo Horizonte, conta que, depois de dois anos e meio numa relação marcada por violência psicológica, patrimonial e ameaças, conseguiu medida protetiva em 2024. Sem grandes resultados práticos. “Ele nunca respeitou a medida. Eu acionei a polícia várias vezes e, mesmo em flagrantes, não houve prisão. Um policial chegou a duvidar que eu tivesse direito à medida, só porque sou travesti. Isso é transfobia institucional”, denuncia. Depois de registrar o boletim de ocorrência, Dodi foi acolhida na Casa da Mulher Mineira, no Centro de Belo Horizonte.

Desinformação e abandono

A falta de informação sobre direitos previstos em lei faz com que muitas vítimas sequer procurem ajuda, por acreditarem que não seriam amparadas pela legislação. A desinformação e a transfobia institucional alimentam o medo, o isolamento e o ciclo de violência, avaliam ativistas. “Dizem que o acolhimento acontece, que basta procurar os canais certos, mas isso é mentira. Se o sistema funcionasse, eu não estaria vivendo com medo, medicada, exausta, sem conseguir sair do lugar”, afirma Estefane Nogueira, de Neves.


Ela conta que teve dificuldades para registrar um boletim de ocorrência. “Fui várias vezes à Delegacia de Atendimento à Mulher e não consegui atendimento. Só consegui alguma resposta depois de ir pessoalmente ao Fórum de Ribeirão das Neves e implorar por ajuda”, relata.

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Diário do horror

Facadas, espancamento, enforcamento, tiros: registros de morte de pessoas trans em Minas desde 2024

Nik Ribeiro
22 anos, mulher trans, morta a facadas em BH em 19 de abril de 2024.

Marcinha Ribeiro
27 anos, travesti, agredida em Ribeirão das Neves, Grande BH, em 23 de abril de 2024. Morreu dois dias depois em decorrência das agressões.

Gabi Campbel
(Gabriella da Silva Borges), 50 anos, mulher trans, encontrada morta em BH em 26 de junho de 2024, por asfixia.

Alana
27 anos, mulher trans, morta a tiros em Matozinhos, na Grande BH, em 4 de dezembro de 2024.

Jeane Lui
32 anos, mulher trans, morta a tiros na Avenida Raja Gabaglia, em BH, em 5 de janeiro deste ano.


Sofia
aproximadamente 30 anos, mas de idade não confirmada, travesti, morta a tiros. Encontrada em uma estrada de terra em Betim, na Grande BH, em 14 de fevereiro deste ano.

Pâmela Valadares Nunes
28 anos, mulher trans, morta por enforcamento em Frutal, no Triângulo Mineiro. Corpo encontrado em uma cisterna em 19 de fevereiro deste ano.


Dandara
idade não informada, morta a facada atrás dos banheiros de posto de combustíveis de Uberaba, no Triângulo Mineiro, em 6 de outubro deste ano.

Christina Maciel Oliveira
45 anos, mulher trans, espancada até a morte em Venda Nova, BH, no dia 20 de outubro deste ano.


Alice Martins Alves
33 anos, mulher trans, agredida em 23 de outubro na Savassi, em BH. Morreu em 9 de novembro em decorrência das agressões.

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O juiz Marcelo Gonçalves de Paula, titular do 2º Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Belo Horizonte, afirma que o reconhecimento legal da aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres trans está pacificado no Judiciário mineiro. “Não temos problema no acesso à lei em si. A dificuldade está na estrutura social, no atendimento das polícias e na formação dos agentes públicos”, atesta.


Mulheres trans vítimas de violência doméstica podem solicitar medidas protetivas nas Delegacias da Mulher (em casos de relações afetivas) ou nas delegacias comuns (quando a violência é motivada por transfobia). Também é possível pedir proteção pela Delegacia Virtual, de forma on-line.


Para Marcelo Gonçalves, o futuro depende de mudanças profundas: “Estamos desfazendo uma estrutura patriarcal e transfóbica para construir uma nova estrutura igualitária e humana. É um processo lento, mas necessário. Precisamos de delegacias especializadas para LGBTQIA+, de formação continuada para servidores, campanhas educativas e redes de acolhimento eficientes.”


Atrocidade na Savassi

Era madrugada de uma quinta-feira, dia 23 de outubro, quando Alice Martins Alves, de 33 anos, foi brutalmente agredida na Savassi, Região Centro-Sul de BH. Ela morreu no dia 9 de novembro por complicações dos ferimentos sofridos. De acordo com investigações em andamento, da Polícia Civil de Minas Gerais, o ataque teria sido motivado por uma conta de R$ 22 não paga pela vítima, que teria consumido bebida em uma tradicional pastelaria, próxima à Avenida Getúlio Vargas. No entanto, os investigadores acreditam que o crime também pode ter tido caráter transfóbico.


A polícia confirmou que os dois principais suspeitos de cometer as agressões são funcionários do estabelecimento em que Alice havia consumido na noite do crime. Até o fechamento desta reportagem, eles ainda não haviam sido presos.


Após a agressão, Alice perdeu a consciência e foi socorrida pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Em um primeiro momento, foi encaminhada para a Unidade de Pronto-Atendimento Centro-Sul. Dez dias depois, em 2 de novembro, foi levada de ambulância para o Pronto-Atendimento do Hospital da Unimed, em Contagem, na Região Metropolitana de BH. Na unidade de saúde, exames de imagem apontaram fraturas nas costelas, cortes no nariz e desvio de septo.

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Em 8 de novembro, os médicos diagnosticaram uma perfuração no intestino, possivelmente causada por uma das costelas quebradas e, segundo suspeita do pai da vítima, Edson Alves Pereira, agravada pelo uso de anti-inflamatórios após a agressão. Com o diagnóstico, Alice foi submetida a uma cirurgia de emergência, mas não resistiu à infecção generalizada. 

* Estagiária sob supervisão do editor Roney Garcia

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