NEM NA MORTE HÁ PAZ

Família luta para garantir nome social em túmulo de mulher trans

Sissy Kelly foi enterrada com o nome masculino, mesmo após ter sua identidade de gênero reconhecida oficialmente em vida.

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No dia 28 de junho, Dia do Orgulho LGBTQIAPN+, o Estado de Minas contou a história de Sissy Kelly, uma travesti que se tornou símbolo da luta por dignidade e direitos em Belo Horizonte. Ao longo da vida, enfrentou preconceito, violência do Estado e o estigma do HIV com coragem e resistência. Meses antes de morrer, Sissy conseguiu mudar seus documentos, adicionando o nome social. No entanto, depois que ela morreu, em novembro de 2024, o corpo de Sissy foi enterrado com o nome masculino, mesmo sob protestos da família.

Marcela Santos, estudante de pedagogia e sobrinha de Sissy, compartilhou com a reportagem os documentos que mostram o apagamento da história da tia. No RG dela consta o nome social reconhecido: Sissy Kelly Lopes de Souza.  No entanto, na certidão de óbito aparece o nome masculino, “Idelci Lopes de Souza” e a identificação de homem solteiro.

O corpo de Sissy foi enterrado no Cemitério Belo Vale, em Santa Luzia (MG), Região Metropolitana de BH, no dia 1º de novembro de 2024. Na lápide, nenhuma menção ao nome pelo qual viveu, se apresentou e lutou para ser reconhecida. Foi sepultada como Idelci — um apagamento de sua identidade.

Marcela relembra com dor o momento do velório. “A plaquinha estava com o nome de Idelci. A gente já tinha pedido, no dia de acertar os detalhes, que tinha que estar com o nome Sissy. Meu irmão ficou com raiva e pediu pra mudar na hora”, relata.

Sonia Sissy Kelly Lopes na bancada da cozinha, com a bandeira transgênero — em azul, rosa e branco — estampada com as palavras "dignidade e respeito"
Sonia Sissy Kelly Lopes na bancada da cozinha, com a bandeira transgênero — estampada com as palavras "dignidade e respeito" Arquivo Pessoal

Segundo ela, o constrangimento continuou: “Depois, uma funcionária ainda virou pro meu irmão e perguntou: ‘É a que chama pelo apelido?’. Ele respondeu: ‘Não é apelido, é nome social’. Disse sério. A moça até assustou, mas a gente já estava muito desgastado, no dia”. 

Mesmo depois de terem pedido a correção, ao voltarem ao cemitério, a família viu que o nome não havia sido mudado. Eles ainda tentaram resolver, mas o processo se mostrou burocrático e desanimador. “A gente tentou contato e parecia que só iam resolver se a gente corresse muito atrás. Foi empurrando com a barriga”, conta.

Mas por que isso aconteceu?

A reportagem do Estado de Minas entrou em contato tanto com o cartório responsável pela emissão da certidão de óbito quanto com o grupo Zelo, responsável pela gestão do cemitério Belo Vale. Em nota, a empresa explicou que, para a construção da lápide, se leva em conta o que consta na certidão de óbito, que é o documento exigido pelo cemitério.

“O Grupo Zelo, que administra o Cemitério Belo Vale, esclarece que todo o processo de sepultamento tem como base a certidão de óbito apresentada pela família, na qual não consta o nome social da falecida. A empresa ressalta que não se opôs à alteração da lápide e está à disposição para apoiar a família com a maior agilidade possível, desde que a solicitação seja oficializada pelo representante legal do jazigo”, informou.

Rebeca Morais, escrevente do Cartório de Registro Civil do 1º Subdistrito de Belo Horizonte, que emitiu o documento, explicou que o nome social não consta na certidão de nascimento e, por isso, não foi incluído na certidão de óbito. “O nome social corresponde à forma pela qual a pessoa é reconhecida e se identifica no meio social e relacional. É um direito assegurado por normas administrativas, podendo ser utilizado em documentos de identificação como a Carteira de Identidade (RG) e a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), sem, contudo, implicar alteração no nome constante do registro civil de nascimento. Sendo assim, o nome social não substitui o nome civil, registrado, e sua utilização não possui, por si só, efeito jurídico para fins de alteração de assento registral. Não há, portanto, respaldo legal que determine o registro civil com base exclusivamente no nome social, sem a devida retificação formal”, informou.

Certidão de óbito de Sissy, registrada com seu nome de nascimento, Idelci Lopes de Souza
Certidão de óbito de Sissy, registrada com seu nome de nascimento, Idelci Lopes de Souza Arquivo Pessoal

“Para que o nome social venha a substituir legalmente o nome constante no registro civil, faz-se necessária a retificação do assento de nascimento por meio de procedimento judicial ou administrativo (quando o próprio registrado solicitar), conforme normativa vigente, devendo tal providência ocorrer em vida, nos termos da legislação aplicável”, completou. 

O nome social é suficiente?

O nome social é o que pessoas trans, travestis e não-binárias escolhem para se identificar e serem reconhecidas em sua identidade de gênero, independentemente do nome civil registrado no nascimento. O reconhecimento do nome social é uma conquista importante para garantir respeito e dignidade no convívio social e em serviços públicos. 

O Decreto nº 8.727/2016 garante que, em órgãos públicos federais, pessoas travestis e transexuais devem ser chamadas pelo nome social, respeitando sua identidade de gênero. No entanto, o nome social não substitui  o nome civil em documentos oficiais como certidões de nascimento, casamento ou óbito. Para alterar o nome e o gênero no registro civil, é necessário passar por um procedimento de retificação do nome. 

‘Assinei chorando’

Sissy conseguiu o reconhecimento oficial do nome social em setembro de 2024. Em novembro do mesmo ano, morreu. Ou seja, não teve tempo suficiente para retificar o nome civil em vida.

Marcela conta que, ao assinar a certidão no cartório, percebeu que o nome estava incorreto e pediu que fosse corrigido. O documento foi levado para conferência e, ao retornar, foi informada de que não seria possível alterar, já que a certidão de nascimento não havia sido retificada. 

Naquele momento de dor, Marcela reviveu a dor que Sissy sentiu muitas vezes em vida – ter seu gênero apagado. “Perguntei se dava para colocar os dois nomes e ela disse que também não. Eu até entendi que ela não podia fazer nada naquele momento. Ela anotou de próprio punho que eu tinha solicitado a mudança. Eu estava muito abalada e chorei na hora de assinar. É muito doloroso”, contou.

De acordo com o advogado Júlio Mota, especialista no direito ao nome de pessoas trans, o documento inclui um campo chamado “observações”, no qual pode ser incluído o nome social. “Esse campo serve justamente para adicionar informações relevantes que não cabem nos outros campos, mas que são importantes no registro do óbito”, explica. 

No entanto, o cartório afirma que “Infelizmente não é possível incluir uma observação referente ao nome social no registro”. 

O corpo que se vai, a identidade que persiste

O advogado ressalta que, com o sistema burocrático dos cartórios, a identidade de uma pessoa trans pode ficar à mercê da interpretação e vontade do tabelião. O especialista afirma que, quando a pessoa não fez a retificação formal do nome em vida, o tabelião tem a palavra final para decidir qual nome vai constar no registro de óbito. “Isso deixa as pessoas trans vulneráveis, porque o nome social, que representa sua identidade e dignidade, pode ser simplesmente ignorado”, pontua.

Para ele, essa situação revela uma fragilidade no sistema legal brasileiro, já que o sistema  depende de uma burocracia que não acompanha a complexidade da vida dessas pessoas. “Mesmo com normas que reconhecem o nome social, elas não têm força plena para garantir esse direito no registro civil se não houver a retificação judicial ou administrativa”, diz. Ou seja, isso significa que o direito pode ser negado no último adeus.

Além da burocracia, outro fator que contribui para o apagamento da identidade de pessoas trans após a morte é a falta de respeito por parte dos próprios familiares — uma realidade frequente no Brasil. Esse não foi o caso de Sissy, cuja família reconhece e honra a identidade dela, mas contrasta com episódios como o de Alana, mulher trans de Aracaju (SE) que, em 2021, foi enterrada pela família usando terno, com um bigode falso e tratada como homem. O caso gerou indignação nacional e evidenciou a urgência de políticas que garantam a dignidade póstuma às pessoas trans.

 “O nosso grande problema hoje com pessoas trans é que quem tutela o corpo é a família. E é aí que normalmente vem a violência”, ressalta Júlio Mota. Ele aponta que esse tipo de apagamento é mais uma forma de violência simbólica após a morte.



“Essas violações mostram o quanto precisamos de uma legislação específica, para que ninguém tenha sua memória desrespeitada por preconceito ou negligência”, afirma.

Reconhecimento

Depois que a família de Sissy entrou em contato com a deputada federal Duda Salabert (PDT-MG), enviou um requerimento ao cemitério, pedindo a alteração da lápide. “No dia 01 de julho de 2025, fizemos uma visita ao local e constatamos a lápide com o nome incorreto. Tal atitude constitui, além de um ato de insensibilidade, uma forma de transfobia institucional e uma grave violação à dignidade póstuma de Sissy Kelly”, diz o documento.

A deputada federal Duda Salabert ao lado de Sissy, ativista histórica pelos direitos da população trans em Belo Horizonte.
A deputada federal Duda Salabert ao lado de Sissy, ativista histórica pelos direitos da população trans em Belo Horizonte. Arquivo Pessoal

Duda relembra que a família da Sissy lutou pelo direito de ela ter a identidade respeitada após a morte. “O cartório emitiu a certidão com o nome de registro — ignorando o nome social — e o cemitério, mesmo tendo acordado com a família que colocaria o nome social na lápide, não cumpriu. A família confiou nesse acordo, e o cemitério descumpriu o combinado. Isso não pode acontecer.”

A parlamentar destaca que o caso da lápide sem o nome de Sissy era urgente, sobretudo pela importância que ela teve na história do movimento trans em Minas. “O caso da Sissy chama atenção por dois motivos. Primeiro, porque Sissy não era apenas uma pessoa trans, ela foi uma das maiores lideranças da América Latina na luta pelos direitos humanos e pelos direitos da população LGBTQIA+, especialmente travestis e transexuais. Desrespeitar sua identidade de gênero após a morte é também desrespeitar a história de luta do movimento trans. Quando soubemos o que havia acontecido, entramos em contato direto com o cemitério, que reconheceu o erro, pediu desculpas e providenciou uma nova lápide com o nome social”, pontua.

Iniciado o diálogo com o cemitério, finalmente a família começou o processo para a alteração da lápide. Dessa vez, constará o nome com que Sissy se identificava.

Lápide atualizada com o nome Sissy Kelly, em 4 de julho, após pedido da deputada Duda Salabert.
Lápide atualizada com o nome Sissy Kelly, em 4 de julho, após pedido da deputada Duda Salabert. Arquivo Pessoal

Violência póstuma

Além de ajudar a família de Sissy, a deputada criou o Projeto de Lei nº 56, de 2024, que busca garantir que todas as pessoas tenham sua identidade respeitada mesmo após a morte, impedindo que sejam apagadas em registros oficiais ou em cerimônias fúnebres — independentemente de sua identidade de gênero, religião ou crença.

"No caso das pessoas trans, se a pessoa se reconhece com uma identidade de gênero, religiosa ou teológica, isso precisa ser respeitado mesmo após a morte”, afirma a deputada. Ela cita como exemplo que muitas pessoas que viveram sua trajetória em religiões de matriz africana acabam tendo seus velórios e sepultamentos feitos conforme ritos cristãos, sem respeito à sua fé. “Nosso projeto defende o desejo da pessoa, seja no aspecto religioso, ideológico ou identitário”, ressalta.

Sissy: um símbolo desrespeitado

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Sissy Kelly foi uma figura central na luta pelos direitos da população trans e de pessoas em situação de rua em Belo Horizonte. Após anos de exclusão e violência, ela transformou sua vivência em militância. A partir de 2008, passou a atuar ativamente na Anav Trans, entidade que ajudou a fundar e que se dedica à defesa das travestis, mulheres e homens trans, especialmente os mais velhos e em vulnerabilidade social.

Sissy também integrou a Pastoral da Rua, o CIAMP Rua (Comitê Intersetorial da Política Nacional para População em Situação de Rua) e a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids, levando sua voz e experiência para espaços de construção de políticas públicas. Trabalhou ainda no Gapa (Grupo de Apoio à Prevenção da Aids), contribuindo com ações de saúde e acolhimento.

Nos últimos anos, sua principal bandeira foi o direito à moradia digna para travestis e pessoas trans idosas. Sissy lutou para que ninguém mais precisasse envelhecer nas ruas ou em abrigos que não reconhecessem suas identidades. Sua trajetória em BH foi marcada por coragem, afeto e insistência em existir com dignidade — até o fim.

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