ENTREVISTA

J. D. Vital sobre papa Francisco: "Uma voz incômoda diante dos poderosos"

Especialista em assuntos eclesiásticos, entrevistado fala sobre a morte do papa Francisco, seu legado e a coragem de condenar guerras e injustiças

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Escritor, jornalista, membro da Academia Mineira de Letras, estudioso e especialista em assuntos eclesiásticos, J. D. Vital é o convidado do EM Minas. Com conhecimento para falar sobre tudo o que envolve a Igreja Católica, ele repercute, em entrevista à jornalista Carolina Saraiva, a morte do papa Francisco, na última segunda-feira (21/4).


Na entrevista, J. D. Vital discursa sobre o legado de Francisco com o seu pontificado, as marcas deixadas no comando da Igreja em defesa das minorias, sua posição de vanguarda para tratar assuntos delicados, como os casos de abusos sexuais cometidos por membros do clero.


Ele também explica como se dá o conclave, processo de seleção do próximo sumo pontífice, e cita os cardeais brasileiros que podem ser escolhidos. No que se refere às perspectivas quanto à escolha, J. D. Vital mostra o que se espera sobre o novo papa e os nomes que vêm se destacado – se é um caminho de continuidade ao trabalho do argentino ou a retomada de um tom conservador na Igreja.


Para o estudioso, Francisco foi um grande papa que se transformou como uma voz discordante no Vaticano. "Uma voz incômoda diante dos poderosos, que não teve medo de condenar as guerras, não teve medo de condenar todos os governantes poderosos da Terra que afligiram e afligem a humanidade."


No fim das contas, o que fica sobre o religioso, para o especialista, é a simplicidade na forma de tratar cada um, a herança da misericórdia, a abertura do coração da Igreja para quem mais precisa. "Ele disse: todos são filhos de Deus. Essas são marcas profundas do mistério do grande pastor, um profeta argentino chamado papa Francisco".


Nascido em Barão de Cocais, em 1947, J. D. Vital foi seminarista. Dizia que, ao sair do seminário, os ex-seminaristas tinham duas opções: ministrar aulas ou seguir carreira no jornalismo. Após lecionar em alguns colégios, formado em filosofia e comunicação social pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, iniciou a carreira como jornalista no Diário de Minas e trabalhou nas sucursais dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo. Foi comentarista das emissoras de rádio Antena 1 e Alvorada e apresentou o programa de entrevistas "Gente de opinião", na TV Manchete.


Em 1982, coordenou a campanha dos candidatos ao governo de Minas, Tancredo Neves e Hélio Garcia, e após a vitória chefiou a assessoria de imprensa e relações públicas. Como escritor, publicou os livros-reportagem "Como se faz um bispo, segundo o alto e o baixo clero" (Civilização Brasileira, 2012) e "A revoada dos anjos de Minas" (Autêntica, 2016), entre outros. Já membro da Academia Marianense de Letras, foi eleito para a Academia Mineira de Letras em 2021 para ocupar a cadeira de número 10, sucedendo Fábio Proença Doyle.


O assunto não poderia ser outro, um dos mais falados nos últimos dias, a morte do papa Francisco. O que esse papa deixa de legado? Qual é a marca de seu pontificado, na sua opinião?

O papa Francisco deixa o legado da misericórdia, da abertura do coração da Igreja para com os migrantes, os deserdados, os mais pobres, os injustiçados do mundo, todos aqueles que sofrem com perseguição e injustiça.


Ele abriu as portas da Igreja, não só para esses injustiçados sociais, como também para aqueles discriminados pela Igreja, como os divorciados, que não podiam comungar, não podiam frequentar os sacramentos. Ele abriu também para os membros das comunidades LGBTQIAP+, que eram tratados assim, não vamos dizer com desprezo, mas com um certo afastamento.


Ele disse: "Todos são filhos de Deus". Então essas são marcas profundas do mistério do grande pastor, um profeta argentino chamado papa Francisco. Sem falar que ele também trouxe mudanças fortes dentro da Igreja, com uma política dura de condenação da corrupção, as questões financeiras do Vaticano.


Também sobre essa que é uma questão crucial e dolorosa, que aflige a Igreja no mundo inteiro, que são os abusos sexuais cometidos por membros do clero. Ele perseguiu, combateu e autorizou a justiça civil a julgar esses casos. Ou seja, tirou o véu, tirou o manto que cobria esses podres, na minha opinião.


Esses são alguns pontos do legado desse grande papa, que se transformou como uma voz discordante no Vaticano, uma voz incômoda diante dos poderosos, que não teve medo de condenar as guerras, não teve medo de condenar todos os governantes poderosos da Terra que afligiram e afligem a humanidade.


No novo Vaticano, espera-se que esse novo papa seja como Francisco ou ele foi extremamente diferenciado e há um temor de que esse novo nome não dê sequência a esse legado?

Os vaticanistas, aqueles que escrevem sobre sucessão no Vaticano, estão levantando alguns nomes. O principal deles é um cardeal italiano chamado Pietro Parolin. Ele é cardeal secretário de Estado do Vaticano. Ou seja, é o primeiro ministro da Santa Sé. É um homem experiente, está no cargo há 12 anos, teve a confiança do papa Francisco. Foi nomeado pelo papa Francisco, foi feito cardeal e foi nomeado como secretário de Estado.

Ele está lá, tem uma experiência fabulosa no conhecimento e no trato com as Nações Unidas, com os governos e com os regimes mais diferentes, sejam governos ocidentais, como os Estados Unidos, como o presidente Trump, seja com governos comunistas como a China, onde está o presidente Xi Jinping.


Um homem experimentado. Falam que ele seria o indicado para conduzir a barca de Pedro nesse mundo, nesse mar de ondas perigosas e altas. Seria o nome mais forte nesse momento.


Como estudioso, especialista em assuntos eclesiásticos, uma autoridade no assunto, por favor, explique esse processo de sucessão no Vaticano. Quantos cardeais participam dessa escolha?


No total, o colégio dos cardeais é composto por 252 membros. Entre eles, apenas 135 poderão entrar. Pelas normas do Vaticano, da Igreja, podem participar do conclave apenas os cardeais com idade inferior a 80 anos. Aqueles que completarem 80 anos até a véspera da morte do papa, não podem entrar, não têm direito a votar. Não tem direito nem de entrar na Capela Sistina, onde é feita a assembleia cardinalícia.


A propósito, quando morreu o papa João Paulo II, em 2005, o cardeal de Belo Horizonte, dom Serafim Fernandes de Araújo, ficou incomodado, chateado, porque tinha acabado de completar 80 anos, e não entrou no conclave. Mas foi para Roma, porque o cardeal maior de 80 anos não vota, mas pode ser votado, e pode participar das reuniões que são realizadas no período que antecede o conclave, as chamadas congregações gerais.

Elas estão acontecendo. Parece que em Roma, logo depois da morte do papa, já havia um grupo de 60 cardeais participando dessas congregações, discutindo. Foram esses cardeais, por exemplo, que marcaram a sepultura, o enterro do Papa.


Quantos cardeais são brasileiros e quantos podem participar dessa votação ou serem votados para também se tornarem papa?

São oito cardeais brasileiros que podem viajar para a Itália, mas um não entra no conclave. O cardeal, por sinal mineiro, nosso conterrâneo, Raymundo Damasceno Assis, de Lamin, no Campo das Vertentes. Não entra porque ele tem 88. Os cardeais que podem votar são sete.


O cardeal do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta; o cardeal de Brasília, dom Paulo Cezar Costa; o cardeal de Salvador, dom Sérgio da Rocha; o cardeal de Manaus, dom Leonardo Steiner; o cardeal de Porto Alegre, dom Jaime Spengler, que acabou de ser nomeado cardeal; o cardeal de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer; e o cardeal de Santa Catarina, João Braz de Aviz.


O que se espera do próximo papa?


Há quem espere que o próximo papa seja um continuador, que prossiga nessa caminhada em direção a uma abertura maior da Igreja para os assuntos do momento, que dê então continuidade ao legado de Francisco.


Mas há aqueles que querem que o novo papa mude tudo isso, pise no freio. Sobre esses conservadores, estão praticamente em todo o mundo. No Brasil, infelizmente, nós também temos os católicos divididos entre progressistas e conservadores, na política e também na religião.


Mas dois países lideram as posições conservadoras na igreja – Estados Unidos e Alemanha. Têm posições claras a ponto de cortarem financiamento do Vaticano, que perdeu muito dinheiro e tem dificuldade para se manter na assistência.

A Igreja é a maior entidade de assistência social do mundo e precisa de dinheiro. A Igreja está sofrendo, o Vaticano está sofrendo. Por isso, há quem ache que seria necessário uma mudança.


Eu até ouvi falar que, depois da eleição do Trump, a popularidade do papa Francisco nos Estados Unidos caiu de 90% para 70%, 75%. Mas o papa não estava nem aí, não se preocupava com a popularidade, mas com a evangelização.

Na sua opinião, como deveria ser o próximo papa?


Quem sou eu para dar palpite. A escolha do papa é um mistério, porque o Espírito Santo age, sopra no ouvido dos cardeais. Eu escolheria um africano. Um cardeal africano representaria, basicamente, o que Barack Obama representou quando foi eleito nos Estados Unidos. Um choque geral.


Quanto tempo pode durar e quando começa o conclave, a escolha do novo papa?


Pode durar o tempo que for necessário. Houve um tempo em que os cardeais não conseguiam escolher um nome. Então, o povo de Roma os trancou dentro de uma sala, e com chave, com "clave". "Claves" em latim é "chave". Eles ficaram fechados, isolados dentro desse conclave até escolher o candidato. Mas, na vida moderna, geralmente, os conclaves duram de três a quatro dias. O último parece que durou dois dias.
Então, não sei. Ainda não foi marcado, mas acho que, a partir do enterro do Santo Padre, a congregação dos cardeais, encarregados da administração da Igreja nesse período vacante, vai marcar a data do início. Até porque a maioria dos cardeais já deve ter chegado a Roma.


É verdade que qualquer homem pode ser candidato a papa?


Teoricamente, os primeiros papas eram cristãos escolhidos na comunidade, ali em Roma, nas catacumbas etc. Teoricamente, mas, na realidade, é dentro daquele grupo dos cardeais.


Sobre esse processo de seleção, vou citar o filme lançado em 2024, agora recente, “Conclave”. O senhor assistiu?


Assisti, sim. O filme é sensacional, mas é Hollywood puro. Tem imagens, cenas maravilhosas, um som genial. Mas aquilo tudo é ficção. No entanto, o que o filme mostra são as conversas, as confabulações, a formação de blocos, a costura política.


Mas o processo é aquele? Os cardeais vão ao Vaticano, ficam fechados, isolados até a definição desse nome, não podem ter contato com ninguém. É daquela forma?

É daquela forma. E com votações diárias, duas de manhã e duas votações à tarde. Toda vez que não se conseguiu o quórum necessário para a eleição do papa, que é o número mágico de dois terços.


Vamos supor, agora 135 podem votar. De 135, dois terços têm que escolher o mesmo nome?

Isso. Nas primeiras eleições, dizem alguns cardeais que participaram de conclaves passados, são dados votos de homenagem. "Ah, eu vou votar no cardeal fulano de tal, o meu amigo". "Ah, eu vou votar nesse aí que é missionário lá na África ou na Ásia". Até que o processo vai se afunilando e os nomes vão saindo, ficando um, dois, três, até o final.


Se por acaso não se conseguir esse quórum de dois terços – no final são 24 sessões eleitorais –, muda o processo. Será eleito quem tiver maioria mais um. Os que receberem mais votos, ou seja, maioria, mais um, já é eleito.


E é em cédula de papel?

Cédula de papel onde ele escreve: "eu elejo como sumo pontífice fulano de tal". Tudo em latim. Eles mantiveram o latim, até porque ali tem gente do mundo inteiro. Eles escrevem o nome, o nome vai para a junta apuradora e, se não se conseguir eleger, eles queimam e a fumaça sai preta.

Quando a gente vê na televisão aquela fumaça saindo e "habemus papam", é quando a fumaça é branca. Se for fumaça preta é porque não tem o nome ainda?

Sim. Eles adicionam produtos químicos nos votos queimados para transformar a fumaça em uma fuligem negra, ou outros tipos de produtos químicos para transformá-la em fumaça branca. Aí o mundo cai no aleluia, "habemus papam". Tomara que seja um bom nome.

O senhor havia dito que tinha uma preferência, que, caso pudesse escolher, que esse novo papa seja de origem africana. Isso vem também pela representatividade e pela esperança de continuidade do legado do Francisco, para vivermos naquela abrangência e valorização de minorias, o que ele fez muito durante o seu pontificado?

É, eu concordo com você, mas não sou só eu. Tenho ouvido comentários de vaticanistas do mundo inteiro, dizendo que talvez fosse o momento da Igreja escolher um candidato que fosse da África ou da Ásia. Ou um papa negro ou um papa amarelo. Existem bons nomes na Igreja católica na África e bons nomes na Ásia.

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Aliás, na Ásia hoje tem um nome que desponta, disputando o favoritismo com o cardeal italiano Pietro Parolin, que é o cardeal de Manila, é filipino. Se chama Luiz Antônio Tagle. Guarde esse nome. Todo mundo está falando desse nome, cardeal Tagle.


Dizem que ele é o Francisco asiático, o Francisco filipino. Tem umas preocupações sociais, condena as guerras, defende a participação da mulher mais intensa na Igreja. E é um homem preparado – estudou nos Estados Unidos, na Universidade Católica de Washington – e tem vários cargos na administração vaticana. 

*Com Carolina Saraiva

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