Na foto, Daru Tikuna, artista plástica e representante do povo Tikuna, na região do Rio Solimões, no Amazonas.
       -  (crédito:  Túlio Santos/EM/D.A Press)

Na foto, Daru Tikuna, artista plástica e representante do povo Tikuna, na região do Rio Solimões, no Amazonas.

crédito: Túlio Santos/EM/D.A Press

“Antes de o Brasil ser invadido, nós já existíamos aqui e vivíamos muito bem. Hoje, nós precisamos resistir para existir.” A declaração da artista plástica Daru Tikuna reflete a histórica luta dos indígenas para preservar sua ancestralidade e identidade para as gerações futuras. Com 19 etnias indígenas, as comunidades de povos originários em Minas Gerais se revelam guardiãs de tradições milenares e agentes dinâmicos de transformação e resiliência. No Dia dos Povos Indígenas, o Estado de Minas traz relatos de superação e desafios desses brasileiros.

 

Atualmente, Minas Gerais tem 36.699 indígenas entre seus habitantes, o que significa um aumento de 18% em relação ao levantamento de 2010, quando eram 31.112. É, no entanto, o terceiro estado com menor proporção de indígenas na população, com cerca de 0,18%,ficando à frente apenas de São Paulo (0,12%) e Rio de Janeiro (0,11%). Ainda assim, Minas tem 19 etnias que habitam o estado, conforme levantamento do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes).

 

Entre as etnias que vivem na capital e na Grande BH estão os Pataxó e os Pataxó Hahã-hãe, da Aldeia Naô Xohã, em São Joaquim de Bicas; os Xukuru Kariri, da Aldeia Arapoã Kakyá e os Kamakã Mongoió, da Aldeia Kamakã Mongoió, ambas em Brumadinho. Já em outras regiões do estado vivem os Krenak, na Região do Rio Doce; os Aranã, do Vale do Jequitinhonha; os Xacriabá, no Norte de Minas; entre outros.

 

Já em Minas, as etnias presentes no estado pertencem aos troncos linguísticos Macro-Jê e Tupi-Guarani (Guarani). Em Belo Horizonte, vivem ainda famílias de grupos étnicos de outras regiões do Brasil e até de outros países, como os Warao, da Venezuela, e Quechua, no Peru. A presença de indígenas nas ocupações recentes dos movimentos de Luta por Moradia é muito grande, principalmente das etnias Aranã, Pataxó e Pataxó Ha-ha-hãe, segundo o Cedefes.

 

 

Proteção

 

O coordenador regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas No Espírito Santo e Minas Gerais (Funai CR MG/ES), Douglas Krenak, explica que a principal atuação do órgão, junto aos povos indígenas de Minas e Espírito Santo, consiste na proteção dos direitos desses povos, além da regularização, proteção e apoio na preservação de seus territórios. Segundo dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem mais de milhão de indígenas no país, com mais de 305 povos, falando mais de 274 línguas.


 

Segundo Krenak, a Funai MG-ES atua em uma frente de relação interinstitucional com outros órgãos, principalmente voltados à educação, para reforçar o caráter diverso dos povos indígenas. “A gente tem um país multicultural e pluriétnico. São mais de um milhão de pessoas se declarando indígenas, temos mais de 300 etnias falando mais de 220 línguas diferentes. Existem vários povos indígenas e não o povo indígena”, afirma.

 

Ele aponta a importância de se destacar essa diversidade. “Hoje há uma luta muito grande dos povos indígenas, do Brasil como um todo, de trabalhar junto ao estado brasileiro essa riqueza cultural. O que a gente vê são iniciativas, projetos, programas que tentam padronizar tudo isso. E isso é muito ruim. O povo indígena que vive aqui no estado de Minas não tem a mesma cultura, o mesmo olhar e o mesmo relacionamento com o meio ambiente que os povos indígenas na Amazônia, por exemplo”.

 

Krenak descreve os desafios enfrentados pelos diferentes povos indígenas. “É muito difícil para os povos indígenas, por exemplo, que estão aqui na região da Mata Atlântica, cito meu povo Krenak e povo Pataxó, que em menos de 100 anos teve toda a sua biodiversidade destruída, violentada. Temos povos indígenas aqui, com suas línguas, sua tradição, mas sem uma floresta para poder implementar todo esse conhecimento que foi passado de geração em geração”.

 

”Por ter um caminho mais voltado para essa questão da preservação, o povo indígena é visto como radical, como uma cultura atrasada. Porque o povo indígena tem uma cultura diferente, ele é visto como uma raça mais atrasada, sem conhecimento. Pelo contrário, todos somos seres humanos e precisamos entender isso.”

Douglas Krenak, liderança do povo Krenak e coordenador regional da Funai em Minas e Espírito Santo

 

Segundo ele, muitos desses conhecimentos ficam apenas na oralidade e não são colocados em prática, como antigamente.“Hoje em dia, não se caça mais como antes. Não se pesca mais como antigamente, mas ainda é passada toda essa tradição pela oralidade. O que esses povos têm feito, ao longo de 50 anos pra cá, nessas regiões de biomas devastados, a exemplo da Mata Atlântica, é dialogar com o estado brasileiro programas e projetos de restauração de toda essa mata, de toda essa biodiversidade.”

 

Conhecimento preservado

 

O povo indígena conhecido hoje como Krenak, habitante das margens do Rio Doce, no município de Resplendor, Região Leste de Minas, se formou ao longo de um processo histórico marcado pelo caráter violento da expansão econômica sobre aquela região. A densa Mata Atlântica era refúgio de diversos grupos de “botocudos”, que se abrigaram até meados do século 20 no local, resistindo à colonização em outras zonas já conquistadas pelos brancos, segundo o Cedefes.

 

“Nosso povo ainda tem muito conhecimento tradicional que é mantido até hoje. A produção de artesanatos, de medicamentos naturais, o manuseio de ervas tradicionais para o consumo de chás, para rituais sagrados, rituais de passagem. Então, o povo ainda mantém essas tradições de rituais de passagem, de ritual fúnebre. Mesmo com todo esse crescimento do entorno ao território, com toda essa violação que a gente tem no nosso contexto, o povo ainda consegue manter com muita dificuldade todo esse conhecimento”, relata Krenak.

 

Do Amazonas para BH

 

A artista plástica Daru Tikuna é representante do povo de Tikuna, originário da região do Rio Solimões, estado do Amazonas. Ela também trabalha para manter a cultura e tradições de seu povo. Desde 2002 vive na capital mineira e faz parte do Conselho Estadual de Política Cultural do Estado de Minas Gerais, da Coordenação do Grupo de Trabalho de Salvaguarda da Cultura Indígena de Minas Gerais, além de ser mestre dos Saberes Tradicionais no Projeto Jardins Sagrados.

 

Daru explica que o povo Tikuna não existe aqui no estado. “Tem em outros estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. São filhos de lideranças que vão estudar nas universidades fora do estado”. Eles estão concentrados no Amazonas e são divididos em três fronteiras: Peru, Colômbia e Brasil. “Então existem tikunas brasileiros, peruanos e colombianos”.

 

A artista plástica conta que se divide entre os dois estados, mas faz dois anos que não volta para sua terra natal. “Assumi alguns compromissos aqui para promover a cultura, dentro do estado, através desses órgãos. Mas não podemos ficar muito tempo longe do nosso território. É muito importante estar lá, se recuperar, dar prosseguimento à cultura, à tradição. Minha família toda está lá. Aqui tenho um irmão, que veio há uns quatro anos”.

 

Ela acredita que a ancestralidade é importante para preservar o saber e o conhecimento de seu povo. “Para que ele não se perca no tempo. Através disso, vamos repassando esses saberes de geração em geração”. A artista plástica destaca ainda a importância de se preservar a língua dos Tikuna.“É uma das riquezas que temos. Nossa língua não tem ‘troncos nem raízes’, é considerada uma língua única e isolada. A transmissão de conhecimento é feita de forma escrita e oral. Inclusive meu pai era um dos guardiões da nossa língua e, atualmente, também acabei me tornando a guardiã e tradutora da nossa língua para outras línguas”.

 

“Hoje, somos 5% da população e mantemos a floresta, o bioma de pé. O ser humano se tornou ganancioso, não tem respeito pela floresta. Nós preservamos a floresta para todos, não só para os indígenas”

Daru Tikuna, artista plástica

 

Ela diz que toda a tradição e conhecimento precisam ser mantidos. “O saber das ervas medicinais, a Festa da Moça Nova, quando ela tem a primeira menstruação. Toda vez que posso, levo as meninas para fazer o ritual. A gente não pode se perder no tempo”.

 

Entre os desafios enfrentados, Daru cita o racismo. “Nossa cultura é diferente das pessoas não indígenas. Quando elas se deparam com alguém diferente delas, não querem aceitar. Só que, ao mesmo tempo, elas se perdem também, são seres humanos que dependem do conhecimento da população indígena. Hoje somos 5% da população e mantemos a floresta, o bioma de pé. O ser humano se tornou ganancioso, não tem respeito pela floresta. Nós preservamos a floresta para todos, não só para os indígenas”.

 

Quando questionada como é ser indígena nos dias de hoje é enfática. “É ser vida porque a gente preserva e valoriza a saúde, a humanidade, o ar. E, para que isso reverbere no futuro, é muito importante nos ajudar e dar voz às lideranças e representantes que estão espalhados em vários lugares. Fazer com que essa luta aconteça, independente do lugar, pode ser na cidade ou na mata”.