Depois do Dia D, quando cerca de 150 mil soldados aliados cruzaram o Canal da Mancha, em 1944, para dar início à libertação da Europa Ocidental, Hitler reagiu lançando mísseis sobre Londres. A ofensiva alemã não surtiu o efeito esperado. Os Aliados seguiram avançando pelo Oeste europeu, enquanto a União Soviética pressionava ao Leste. Em 1945, Berlim foi tomada e Hitler se suicidou, selando o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa.

Entre tantos acontecimentos extraordinários, o que mais chamou a atenção do cineasta Zeca Brito foi um episódio bem mais discreto, praticamente: a exposição realizada na Royal Academy of Arts, em Londres, justamente o alvo dos mísseis alemães, em 1944, reunindo 168 pinturas e desenhos de 70 modernistas brasileiros.

Brito explica no documentário “Arte da diplomacia”, disponível na plataforma CurtaOn!, que a mostra foi articulada pelo então ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha (1894-1960), como gesto de agradecimento aos britânicos pelo apoio na luta contra o nazifascismo.

O gesto extrapolava o campo diplomático. A iniciativa também buscava difundir a cultura brasileira e, ao mesmo tempo, provocar Adolf Hitler. “Ele considerava o modernismo uma arte degenerada”, observa o diretor. “Então, realizar uma exposição só com artistas modernistas em um país inimigo, naquele contexto, era também uma forma de provocação”, acrescenta.

Para a curadoria, Oswaldo Aranha recorreu a Candido Portinari, que delegou a tarefa aos amigos Augusto Rodrigues, Clóvis Graciano e Alcides Rocha Miranda. Em um movimento inédito, o trio reuniu artistas de diferentes vertentes – tanto nomes consagrados no Brasil, como Portinari, Di Cavalcanti, Volpi, Tarsila do Amaral e Guignard, quanto aqueles então considerados “primitivos” pela academia, caso de Heitor dos Prazeres, Djanira e José Bernardo Cardoso Júnior, o Cardosinho.

 

Cardosinho e Lucy Citti Ferreira

Ao se debruçar sobre a exposição de Londres, “Arte da diplomacia” resgata artistas que caíram no esquecimento no Brasil, mas cujas obras foram adquiridas e incorporadas a acervos de instituições públicas britânicas. Um dos casos mais emblemáticos é o de Cardosinho, cuja tela apresentada na capital inglesa passou a integrar o acervo da Tate Britain.

A maior parte de suas telas retrata paisagens do Rio de Janeiro, especialmente a Baía de Guanabara. Autodidata, ele não se preocupava com a perspectiva realista nem com a profundidade recomendada pela academia. A simplicidade formal orienta seu trabalho, cuja expressividade se constrói pela cor.

Outra artista pouco lembrada no Brasil, mas resgatada pelo filme, é Lucy Citti Ferreira, que teve uma de suas obras incorporada ao acervo da Manchester Art Gallery.

Lucy estudou na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, em Paris, e, ao retornar ao Brasil, foi apresentada por Mário de Andrade ao pintor Lasar Segall. Suas telas se destacam por fundos escuros, em tons terrosos, e por figuras estilizadas, que contribuem para a construção de atmosfera densa e introspectiva.

Quase mineiro

Também integram esse “lado B” José Moraes, Gastão Worms e Carlos Scliar – esse último, judeu, comunista e gay, era profundamente marcado por ideais combatidos pelo nazismo. O gaúcho Scliar se mudou para Ouro Preto, onde manteve ateliê, e foi convocado para integrar a Força Expedicionária Brasileira (FEB).

Desenho de Carlos Scliar, que produziu obras de arte no front europeu da Segunda Guerra Mundial

Carlos Scliar/reprodução

“Foi na guerra que se iniciou uma nova etapa em minha pintura. Eu era, se não um pessimista, quase um cético; descobri-me, então, um lírico; visceralmente otimista, com uma confiança na humanidade. Foram os desenhos que me salvaram”, escreveu Scliar, referindo-se à série “Desenhos de salvação”, produzida no campo de batalha.

Embora hoje se conheça a lista dos artistas que participaram da exposição inglesa, pouco se sabe sobre o destino das 168 obras exibidas. Registraram-se 88 vendas, mas não há informações sobre para onde todas as peças foram.


“Essa é uma pesquisa permanente”, observa Zeca Brito. “Entre os quadros vendidos, muitos reapareceram e hoje integram coleções particulares. Mas é difícil ter controle absoluto. As obras adquiridas por instituições públicas permanecem no mesmo território, enquanto as que foram para colecionadores são objeto de especulação e migram constantemente. Galerias públicas são espaços seguros de preservação. Apesar do preconceito contra o espaço público, foram as instituições britânicas que garantiram a conservação de obras de Portinari e Di Cavalcanti”, conclui o cineasta.

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“ARTE DA DIPLOMACIA”

Brasil, 2023, 90 min. Documentário de Zeca Brito disponível na plataforma CurtaOn!

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