"Os anos do Super-8" reúne registros da vida familiar de Annie Ernaux, por meio dos quais ela revê seu casamento

crédito: Les Films Pelleas/Divulgação

 

A programação deste domingo (24/3) do Cine Santa Tereza oferece uma mirada bastante diversificada – e original – sobre o fazer cinematográfico. Às 19h, o público poderá conferir o filme "Os anos do Super-8", codireção da escritora francesa Annie Ernaux, vencedora do Nobel de Literatura em 2022, com seu filho mais velho, David Ernaux-Briot. Trata-se de um resgate de imagens de arquivo, gravadas por seu então marido, a partir do início dos anos 1970.


Antes, às 16h30, será apresentada uma sessão especial com seis curtas do diretor mineiro Eberson Martins, que, apesar de sua origem humilde e das adversidades, é responsável por uma produção massiva, iniciada quando tinha apenas 15 anos. Os filmes "Prelúdio", "Faces", "Não pise no anjo azul", "Bomb movie", "Soap" e "After", que têm duração variando entre 2 e 12 minutos, serão exibidos em sequência.


"Ele é um realizador da periferia, morador da Cabana do Pai Tomás, e produz muito, com uma pegada muito particular. São filmes experimentais, produções de baixo custo, mas com um olhar aguçado e satírico", diz Vanessa Santos, coordenadora do Cine Santa Tereza. Eberson Martins explica que a seleção desses seis títulos ficou a seu critério e foi orientada por dois fatores.


Premiados e recentes

"Uma coisa é que eu quis pontuar minha trajetória, então priorizei os trabalhos que ganharam prêmios ou alcançaram reconhecimento internacional. Outra coisa foi o desejo de incluir produções mais recentes, para dar uma atualizada mesmo, porque já teve uma retrospectiva dos meus filmes no Cine Humberto Mauro", diz.


Ele conta que, ainda adolescente, fez dois filmes antes de se mudar para Barcelona com sua irmã. "Fomos numa tentativa de ganhar grana mesmo, para comprar uma casa para nossa mãe", relembra, acrescentando que a viagem à Europa ampliou sua percepção sobre o cinema. Foi lá que ele tomou contato com uma produção mais autoral, de nomes como David Lynch e Fellini, com quem, conforme diz, sempre acalentou o sonho de trabalhar.


"Voltei da Espanha querendo fazer cinema brasileiro. Antes, minha vontade era ir para Hollywood. A Europa foi um exílio econômico, fui para trabalhar, por uma questão familiar, mas foi muito positivo do ponto de vista artístico. Cheguei a conhecer Cacá Diegues, que costumava dizer que 'nós fazemos o melhor cinema brasileiro do mundo'. Quando voltei, em 1995, comecei a produzir com mais constância", relata.


Cinema libertário

Seu desejo, naquele momento, era fazer um cinema "libertário". Foi também naquele período que Martins produziu seu primeiro filme em 16mm, "Vértice", que foi exibido no Cine Humberto Mauro e no Canal Brasil. "Foi um trabalho que teve uma ótima recpção", diz. Ele chegou a realizar três curtas protagonizados pela atriz Lady Francisco (1935-2019), com quem, certa feita, teve uma conversa curiosa.


"Falei para ela sobre meu sonho de trabalhar com Fellini (1920-1993), e ela me disse que já tinha recusado um trabalho com ele. Veja bem, Lady Francisco foi convidada por Fellini. Ela não trabalhou com ele e trabalhou comigo. Eu não trabalhei com Fellini, mas trabalhei com ela, que era uma atriz muito generosa", conta.


Instado a delinear sua própria filmografia, composta exclusivamente de curtas e médias-metragens, o diretor diz que é bem diversificada, tanto em termos de gênero quanto de narrativa. "O que posso dizer é que tem sempre a ver com o que eu estou pensando ou sentindo no momento em que vou esboçar o projeto. Fellini dizia que todo filme que ele fazia era um mesmo e único filme. Também vejo minha obra assim", afirma.


Ele salienta que seus curtas não têm um roteiro linear, são entrecortados, "como a vida da gente é". Martins toma como exemplo o norte-americano David Lynch (“Cidade dos sonhos”). "Ele te dá um quebra-cabeças para montar. Meu filme mais recente, o 'After', que está nessa mostra, é bem isso, a pessoa tem que entender o porquê do 'depois'. A arte tem essa particularidade, de poder não entregar tudo pronto, porque a função dela não é explicar nada, e sim instigar a reflexão", aponta.


Arquivo pessoal

Sobre "Os anos do Super-8", Vanessa Santos diz que ele se insere na mostra "Retratos - Elas em destaque", que, juntamente com outra, intitulada "Mulheres plurais", celebra o Dia Internacional da Mulher e permanece em cartaz ao longo de todo o mês de março. "Annie Ernaux e o filho pegam essas imagens do arquivo pessoal feitas pelo marido dela, entre 1972 e 1981, para mostrar para o neto. Revendo esse material, eles resolvem fazer o filme", explica.


Ela pontua que "Os anos do Super-8" ressignifica, a partir da narrativa da escritora, o olhar do marido, de quem veio a se separar, sobre a vida em família. "Ela reflete sobre a própria vida e, para além dessa esfera íntima, familiar, faz um paralelo com todo o panorama social daquele momento, o desfile socialista de Allende, a Revolução dos Cravos em Portugal, a Espanha se libertando da ditadura de Franco. É um filme que cruza o privado e o público, o íntimo e o coletivo", diz.

 

CINE SANTA TEREZA


Sessão especial de curtas de Eberson Martins, às 16h30, e exibição do filme "Os anos do Super-8", de Annie Ernaux e David Ernaux-Briot, às 19h, neste domingo (24/3). Rua Estrela do Sul, 89, Santa Tereza. (31) 3277-4699. Entrada franca.