Jeferson Tenório participou do projeto Sempre um Papo, no auditório da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais -  (crédito: Marcos Vieira/EM/D.A Press)

Jeferson Tenório participou do projeto Sempre um Papo, no auditório da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais

crédito: Marcos Vieira/EM/D.A Press

 

“Se eu soubesse que aquela cena causaria toda essa celeuma, teria colocado mais no livro”, disse o escritor Jeferson Tenório, em tom de brincadeira, a respeito da cena de sexo de “O avesso da pele”, que fez com que secretários estaduais de Educação de Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná determinassem o recolhimento do título das bibliotecas públicas escolares.

 


Nesta quinta-feira (14/3) à noite, o escritor participou do projeto Sempre um Papo, falando para o auditório lotado da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, em Belo Horizonte, com capacidade para 220 pessoas. O encontro foi mediado pela jornalista Márcia Maria Cruz.

 


A passagem citada por Tenório não é bem uma cena de sexo, mas a lembrança do protagonista de “O avesso da pele” sobre a maneira como a namorada branca de seu pai enxergava o corpo dele, associando-o ao erotismo com frases como “vem, meu negão” e “adoro o teu pau preto”.

 

Escritor Jeferson Tenório

"O meu livro não é erótico", defendeu Jeferson Tenório, em Belo Horizonte

Marcos Vieira/EM/D.A Press
 

 


Tais palavras foram retiradas de contexto pela diretora de uma escola em Santa Cruz do Sul, a 150 quilômetros de Porto Alegre. Em vídeo divulgado nas redes sociais, ela criou polêmica ao criticar a obra de Tenório, dizendo que o livro buscava doutrinar os estudantes.

 


“Recebi a notícia desse vídeo logo depois que cheguei de Cuba, vindo de um festival literário de que participei com a Conceição Evaristo e o Emicida. Tinha feito muitas fotos, que postei no meu Instagram. Uma delas, inclusive, tinha um escrito bem grande: Cuba. Talvez isso tenha contribuído para quererem censurar o livro”, ironizou o autor.

 


Por causa do vídeo, “O avesso da pele” passou a ser recolhido nas escolas. Noventa mil exemplares foram comprados e distribuídos pelo Ministério da Educação (MEC) como parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) em 2022, durante o governo Jair Bolsonaro.

 

 


Estatuto da Criança

 

No Paraná, cerca de dois mil exemplares foram recolhidos, de acordo com o secretário estadual de Educação, Roni Miranda Vieira. Para ele, a polêmica cena infringe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).


O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), também determinou o recolhimento do romance, mesmo tendo admitido, em entrevista ao UOL, que não chegou a ler o livro.

 


Com a repercussão da censura a “O avesso da pele” em Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná, artistas e intelectuais criaram petição em apoio a Jeferson Tenório. Até esta quinta-feira (14/3), o documento somava 7 mil assinaturas, incluindo nomes como Ailton Krenak, Antônio Fagundes, Drauzio Varela, Djamila Ribeiro, Mia Couto e Ziraldo.

 


“Fiquei surpreso com a criatividade de interpretação dessas pessoas que querem censurar o livro”, afirmou o escritor. “O mais absurdo disso tudo é que a indignação foi muito maior por aquelas palavras fora de contexto do que com as denúncias feitas pelo livro”, acrescentou, lembrando que o cerne de “O avesso da pele” é a violência policial, o racismo e a precariedade do ensino no Brasil.

 


“Estamos falando de algo muito perigoso”, continuou. “Estão recolhendo livros em ambientes escolares por meio de uma canetada. Daí para queimar livros em praça pública não está muito distante. A gente já viu isso acontecer, inclusive no Brasil, durante o governo de Getúlio Vargas, quando livros de José Lins do Rego e Jorge Amado foram queimados. Então, a gente tem que tomar muito cuidado para não naturalizar a recolha de livros, independente do lugar.”

 

Pai e filho

 

Vencedor do Prêmio Jabuti em 2021, “O avesso da pele” conta a história de Henrique, professor de escola pública, através do olhar do filho, Pedro. Já adulto, o rapaz traz à tona a vida do pai: as dificuldades enfrentadas devido ao racismo e às condições precárias da educação, além da morte traumática em decorrência da violência policial.

 


Com narrativa simples, sensível e por vezes brutal, Tenório joga luz sobre o Brasil marcado pelo racismo e a falência do sistema educacional, enquanto traça o denso relato sobre as relações pai-filho.
O ponto principal do romance são as frustrações existenciais de dois homens negros num país racista, na tentativa de encontrar a redenção, a superação e a liberdade.

 


De certa forma, a história de Henrique se confunde com a de Tenório, homem negro e ex-professor da rede pública que sonhou transformar a vida de cada aluno por meio do conhecimento.

 


“O meu livro não é erótico, lamento informar a quem comprou achando que ele teria cenas de sexo. É a relação delicada de um pai que já se foi e a lembrança do filho sobre este pai. Talvez até escreva um livro erótico depois de toda essa confusão. Quem sabe?”, concluiu Jeferson Tenório, finalizando o bate-papo.