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Em "Cidade; campo", Joana (Fernanda Vianna, à esq.) deixa a zona rural após barragem de mineração se romper, e vai para São Paulo ao encontro da irmã Tânia (Andrea Marquee)

crédito: Cris Lyra / Divulgação

Novo filme da diretora paulista Juliana Rojas, "Cidade; campo", que tem a mineira Fernanda Vianna, do Grupo Galpão, como uma das protagonistas, estreia mundialmente nesta segunda-feira (19/2), no 74º Festival de Cinema de Berlim, que vai até 25 de fevereiro. O longa está alocado na seção Berlinale Encounters, criada para fomentar trabalhos inovadores de cineastas independentes. "Cidade; campo" terá outras quatro sessões ao longo da semana.

A produção condensa duas histórias em torno de uma mesma temática, que são as migrações entre os meios rural e urbano. Na primeira, a trabalhadora rural Joana (Fernanda Vianna) parte para São Paulo, após o rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração inundar a sua cidade natal. Ela vai ao encontro de sua irmã, Tânia (Andrea Marquee), que mora com seu neto Jaime (Kalleb Oliveira) na periferia da metrópole.

Juliana Rojas explica que o argumento veio, sim, das tragédias que vitimaram centenas de pessoas em Mariana e Brumadinho, mas a história não busca especificar nem contextualizar os funestos acontecimentos nas cidades mineiras. "Acompanhei muito essas histórias, li relatos de pessoas que tiveram suas casas e sítios destruídos e foram obrigadas a se realocar. Isso foi uma inspiração, embora eu não cite exatamente esses locais", diz.

ELOS REAIS

Ela destaca que esse é apenas um mote para tratar de um dos aspectos da migração do campo para a cidade. "Além de todo o trauma, tem essa questão de você ter que estar em um lugar completamente diferente, um meio urbano, o que afeta a história da personagem, mas não é um filme sobre esses desastres de Mariana ou Brumadinho", pontua.

A segunda trama de "Cidade; campo" focaliza o percurso contrário. Flávia (Mirella Façanha) se muda com sua companheira Mara (Bruna Linzmeyer) da cidade em que moram para a fazenda que herdou do pai, falecido recentemente. As duas buscam uma nova vida na zona rural, mas sofrem um choque de realidade ao enfrentar a dureza que o cotidiano no campo impõe. A natureza as obriga a lidar com frustrações, memórias e fantasmas do passado.

"Essa segunda parte também tem a ver com histórias e relatos que ouvi de pessoas que foram buscar uma vida longe das grandes cidades. As duas histórias contêm elementos que se relacionam com minha própria vida e a vida dos meus pais", revela a diretora. Ela diz que é justamente esse tom mais personalista que distancia "Cidade; campo" de seus trabalhos anteriores, especialmente os longas "Trabalhar cansa" (2011) e "As boas maneiras" (2017).

Já o ponto de aproximação é o flerte com o sobrenatural, de acordo com Juliana. Ela explica que nos dois longas anteriores, cuja direção dividiu com Marco Dutra, essa associação é mais explícita, ao passo que em "Campo; cidade", ela se dá mais em uma chave existencial. "Não é um filme de terror, mas também tem elementos estranhos, sobrenaturais, que estão ali para propor uma reflexão sobre os movimentos da vida e suas relações", aponta.

MERGULHO NA PERSONAGEM

O mote, no entanto, conforme reitera, vem de sua própria história. "Meus pais são de origem rural, e sempre me interessei por esses movimentos migratórios, a diferença de viver nesses dois ambientes, o rural e o urbano, e o que muda quando você se desloca. Queria falar dessa sensação no filme, e também das relações de afeto, da família, além dos processos de luto e transformação. Esses temas é que conectam as duas histórias", diz a diretora.

A atriz Fernanda Vianna conta que embarcou no projeto de "Cidade; campo" em função de trabalhos pregressos no cinema que envolveram uma mesma turma de realizadores, representantes de uma nova cinematografia de São Paulo. Ela se recorda que, em 2012, estrelou o longa “O que se move”, de Caetano Gotardo, que integra o coletivo Os Filmes do Caixote, de realizadores que colaboram uns nas produções dos outros.

"A Juliana, o Marco Dutra e as produtoras, Sara Silveira e Maria Ionescu, da Dezenove Som e Imagens, também fazem parte dessa turma. Esse pessoal já me conhecia bem, fui premiada como melhor atriz em Gramado por 'O que se move', então a Sara me chamou agora para participar desse projeto", conta.

Ela destaca que, para compor sua personagem, teve que fazer um mergulho nas histórias das vítimas das tragédias de Mariana e Brumadinho e de seus familiares. "Foi uma preparação intensa, com relatos muito tristes, mas, ao mesmo tempo,é um povo forte, da terra, mineiro na essência, e isso eu trouxe muito para a Joana. Tem a coisa da força, da doçura e do resguardo, de quem chora um pouco para dentro", diz.

Fernanda não esconde a expectativa pela première no Festival de Berlim. "Eu sabia que o filme podia ter essa projeção, mas não deixou de ser uma surpresa, afinal, estamos falando do terceiro maior festival de cinema do mundo. Berlinale reúne muita gente do cinema contemporâneo, com filmes do mundo inteiro, e este ano o homenageado é Martin Scorsese. Estou muito feliz de participar desse grande encontro do cinema."

NA TELONA E NOS PALCOS

Além de "O que se move" e "Cidade; campo", Fernanda Vianna já atuou em filmes como "Moscou" (2009), dirigido por Enrique Diaz, no qual o documentarista Eduardo Coutinho acompanha o Grupo Galpão; "Meu pé de laranja lizma" (2012), de Marcos Bernstein; "O lodo" (2020), de Helvécio Ratton; e "Fogaréu" (2022), de Flávia Neves. Em 2010, ela fundou com seu companheiro, Rodolfo Vaz, que também foi por muitos anos integrante do Grupo Galpão, a Oitis Produções Culturais, pela qual realizou espetáculos premiados, como "Antes do silêncio", "O Capote" e os musicais "O boi e o burro no caminho de Belém" e "Berenice e Soriano", ambos sob sua direção. No ano passado, também dirigiu a ópera "Blue Monday e afluentes" para o Theatro Municipal de São Paulo.