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Com "Um defeito de cor", enredo homônimo ao livro de Ana Maria Gonçalves, Portela encantou o público na Sapucaí

crédito: Pablo Porciuncula/AFP

Coisa inusitada aconteceu no carnaval deste ano: escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo cujos enredos foram inspirados em livros ajudaram a impulsionar as vendas dos títulos retratados na Marquês de Sapucaí e no Sambódromo do Anhembi, respectivamente.


No sábado de carnaval (10/2), por exemplo, a Mocidade Alegre, campeã do carnaval de São Paulo deste ano, percorreu o Sambódromo com o enredo “Brasiléia desvairada: A busca de Mário de Andrade por um país”, do carnavalesco Jorge Silveira. Emulando o clássico “Pauliceia desvairada”, do pai do modernismo brasileiro, a escola homenageou o intelectual paulistano ao mostrar as viagens que ele fez pelo Brasil na década de 1920, percorrendo quase todo o território nacional a fim de conhecer e registrar a cultura popular.


No domingo da folia (11/2), foi a vez de Salgueiro e Grande Rio fazerem mesuras à literatura nacional. Terceira da noite a desfilar, a Furiosa passou pela Sapucaí com o enredo "Hutukara”, do carnavalesco Edson Pereira. Inspirado no livro “A queda do céu”, de Bruce Albert e Davi Kopenawa, a escola jogou luz a questões como aquecimento global, desmatamento e outras ações do homem que impactam diretamente a vida dos indígenas.

 

 


A Grande Rio, por sua vez, se inspirou em “Meu destino é ser onça”, de Alberto Mussa, para desenvolver o enredo “Nosso destino é ser onça”, dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad. Na Sapucaí, a agremiação deu vida ao mito tupinambá de criação do mundo apresentado pelo livro de Mussa, no qual a onça é elemento central da cultura nacional e representante ímpar da brasilidade.


EXPLOSÃO NAS LIVRARIAS

 

Maior repercussão, no entanto, teve a Portela. Segunda escola de samba a desfilar na segunda-feira (12/2), a Majestade do Samba, por meio dos carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga, colocou na Marquês de Sapucaí o enredo homônimo ao romance “Um defeito de cor”, da escritora mineira Ana Maria Gonçalves, lançado em 2006.


Cerca de 24 horas após o desfile, o título já estava no topo da lista dos livros mais vendidos da Amazon. E, na Quarta-feira de Cinzas, a obra ficcional já tinha esgotado no estoque da Estante Virtual, maior marketplace de livros do Brasil. As vendas, de acordo com o site, cresceram 3.300% em apenas dois dias. Com a alta procura, o Grupo Editorial Record, responsável pela publicação de “Um defeito de cor”, anunciou que vai imprimir novos exemplares.

 

“Isso (a repercussão de ‘Um defeito de cor’ e a alta procura pelo livro) foi uma grande surpresa para mim, porque eu acho que é algo muito longe da realidade do escritor, principalmente do escritor brasileiro e, principalmente, de um escritor brasileiro vivo”, conta Ana Maria em entrevista ao Estado de Minas por telefone. “Já vi enredos sobre Machado de Assis, Monteiro Lobato… mas tratavam, geralmente, do conjunto da obra, e não necessariamente de uma obra em si”, continua a escritora de Ibiá, no Alto Paranaíba.


INTERPRETAÇÕES

 

Embora tenha inspirado o enredo, “Um defeito de cor” não foi adaptado para a passarela do samba. O que os carnavalescos Rodrigues e Gonzaga fizeram foi uma interpretação do livro de Ana Maria.


A obra original é narrada por Kehinde, que viveu até os 8 anos em Savalu, na África – mas, depois de ser capturada, chega ao Brasil na condição de escravizada. Na América Portuguesa, Kehinde é comprada por um senhor de terras e passa a trabalhar numa fazenda em Itaparica, na Bahia, onde é abusada sexualmente pelo senhor e fica grávida de seu primeiro filho.


Tempos depois, ela se muda para Salvador, compra sua liberdade e engata um relacionamento com um comerciante português, do qual nasce um menino, que mais tarde é vendido como escravo pelo próprio pai. Com o desaparecimento do filho, Kehinde corre o país tentando localizá-lo. Não conseguindo, retorna à África para recomeçar sua vida. Lá, ela reencontra os amigos de infância, conhece um negro de uma colônia inglesa, fica grávida e se casa com ele. Entretanto, ainda sente falta do filho perdido.


Já com mais de 80 anos, ela volta ao Brasil em busca do filho. Sem sucesso na empreitada, resolve escrever sua história na expectativa de que ele encontre os manuscritos.


LIBERDADE POÉTICA

 

O desfile da Portela, por sua vez, é uma interpretação de “Um defeito de cor”. Com certa liberdade poética, os carnavalescos imaginaram que Kehinde é Luísa Mahin (ex-escrava e ativista pela liberdade) e o filho perdido, Luiz Gama, advogado abolicionista. “O livro é uma carta da mãe para o filho, né? Já o desfile é como se fosse uma resposta desse filho para a mãe”, diz Ana Maria.


“Ou seja, a concepção do desfile é toda deles (Antônio Gonzaga e o André Rodrigues), a partir da experiência deles e da vivência deles em conversa com o livro. Não é algo que eles leram. É algo que eles processaram e entregaram dando, principalmente para mim que sou a autora, uma outra dimensão da obra. Eles acrescentaram camadas ao que eu escrevi ali”, explica.


Ao fazer isso, diz a escritora, a Portela deixa em clara evidência o caráter didático das escolas de samba (“Não é à toa que chamamos elas de escolas”, lembra Ana Maria), que acabou sendo esquecido pelos brasileiros ao longo dos anos.


“Acho que a escola de samba tem também essa função pedagógica de nos ensinar a viver em comunidade, de nos unirmos em prol de um trabalho em comum. Afinal, é isso o que ela faz ao preparar um desfile. As pessoas se juntam para desenvolver um enredo, compor um samba, ensaiar. É como voltar às origens do que era viver em comunidade. Cada escola é como se fosse um grande quilombo”, conclui.

 

DAS PÁGINAS PARA AS TELAS

 

Vencedor do Prêmio Casa de las Américas, “Um defeito de cor” inspirou exposição homônima que já passou pelo Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, em Salvador; pelo Museu de Arte do Rio (RJ) e agora segue para São Paulo. Com curadoria da própria autora, junto com Amanda Bonan e Marcelo Campos, a mostra conta com cerca de 400 obras que se apresentam como interpretação do romance. São desenhos, pinturas, vídeos, esculturas e instalações de mais de 100 artistas brasileiros e africanos.

 

OBRAS NA AVENIDA

 

UM DEFEITO DE COR
. Autora: Ana Maria Gonçalves
. Editora: Record
. 952 páginas
. R$ 99,90

 

A QUEDA DO CÉU
. Autores: Bruce Albert e Davi Kopenawa
. Editora: Companhia das Letras
. 768 páginas
. R$ 82,32

 

MEU DESTINO É SER ONÇA
. Autor: Alberto Mussa
. Editora: Record
. 272 páginas
. R$ 66,40

 

PAULICEIA DESVAIRADA
. Autor: Mário de Andrade
. Editora: Princípios
. 112 páginas
. R$ 39,90