A escritora paulistana Julia de Souza quando criança, ao lado do pai, John Manuel de Souza; ela lança seu livro em BH amanhã, na Quixote -  (crédito: Acervo pessoal)

A escritora paulistana Julia de Souza quando criança, ao lado do pai, John Manuel de Souza; ela lança seu livro em BH amanhã, na Quixote

crédito: Acervo pessoal

“Se há algum substituto do amor, esse substituto é a memória.” É com epígrafe do ensaísta e crítico literário George Steiner que Julia de Souza, de 37 anos, dá início a “John” (editora Âyiné, 110 páginas), estreia em prosa da poeta paulistana (“Covil” e “As durações da casa”). Neste sábado (9/12), Julia autografa o livro na livraria Quixote, onde também haverá uma conversa da autora com o professor e pesquisador Gustavo Silveira Ribeiro.

A memória, no caso, é a dela, a do pai, e a de muitos dos que conviveram com ele. John Manuel de Souza, nome que referencia tanto o pai português quanto a mãe britânica, nasceu na Inglaterra e chegou ao Brasil com 17 anos. Não sabia nada da língua, que acabou dominando com muito acuro.

Foi professor dos cursos de Engenharia e Arquitetura da USP, teve uma fábrica de móveis, foi preso durante a ditadura militar, mudou de área, atuando no âmbito da psicologia experimental na universidade. Casou-se mais de uma vez. Era apaixonado por abelhas. Cortava a própria barba com uma só tesoura, usava talco no lugar do desodorante, lavava os cabelos com sabonete, não ligava para roupas. Teve um único terno e se recusava terminantemente a usar gravatas, que considerava absurdas.

Tais informações vão sendo apresentadas no ensaio biográfico em capítulos curtos (alguns com não mais do que um parágrafo). Mais que os hábitos de John e os acontecimentos da vida dele, o livro busca, por meio da memória, a história de um homem que foi embora sem se lembrar de quem foi.

John viveu 86 anos, os últimos 10 sofrendo de demência. Já em 2016, no fim da vida dele, Julia começou as primeiras anotações. Em formato de diário, naquele momento ela não tinha pretensão alguma, somente escrever sobre o que estava acontecendo com ele, com ela e com sua família.

“Depois que ele morreu, me senti um pouco mais livre para começar a pensar na vida dele e também na forma como a doença me impactou. Também depois da morte, comecei a ter vontade de conversar com o meu pai para saber de coisas antes de eu nascer. Ele teve uma vida maior antes de mim do que depois. Então fiz encontros com pessoas que conviveram com ele, o que foi importante para eu formar uma imagem que não vinha só do meu olhar”, diz ela.

Sete anos se passaram desde então. Houve momentos em que Julia ficou por meses sem mexer nos arquivos. Há dois ou três anos, ela decidiu que os escritos poderiam se tornar um livro. Não há uma cronologia na obra, mas certo agrupamento temático dos capítulos.

FORMA QUEBRADIÇA

“Tinha horas em que eu escrevia no presente; outras, no passado. Quando levei o livro para minha editora (Sofia Marlutti), houve uma tentativa de dar uma equalizada nos tempos. É um livro escrito ao longo dos anos, que trata da memória, então vai acabar havendo uma discrepância na temporalidade. Teve gente que me sugeriu transformá-lo em um texto corrido, quase um romance, mas preferi essa forma mais quebradiça que incorpora o caráter instável da memória”, explica Julia.

Escrever em prosa de forma mais literária foi uma novidade para a autora. “Para tentar me aproximar desse personagem que foi meu pai, senti a necessidade da escrita um pouco mais sólida que a prosa tem. Mesmo assim, acho que consegui ter a economia na linguagem que vem da poesia.”

A autora não se abstém em falar sobre qualquer assunto. A perda da linguagem de John é acompanhada pela da própria Julia. “Não sei quanto tempo fiquei sem falar, mas lembro bem da teoria da minha então analista sobre aquela mudez: eu estaria, segundo ela, me lançando na direção do extravio da língua vivido pelo meu pai”, ela escreve no capítulo “Língua dormente”.

“John” tem seus momentos engraçados, outros muito tristes e doídos. Mas em momento algum a escrita de Julia - que ao elaborar o próprio luto fala com todos nós, já que todos colecionamos perdas na vida - apela para a pieguice.

“Sou uma pessoa bem nostálgica. Acho sempre interessante olhar para trás. O desafio foi não romantizar, não idealizar o passado, falando do meu pai, uma pessoa que admiro muito e a quem tenho muito amor. Não tentei transformá-lo em um herói, mas mantê-lo como uma pessoa comum. E quando se olha para o passado, corre-se esse risco, pois como não se está vivendo mais os desafios, podemos simplesmente fantasiá-los”, conclui.


TRECHO

“Era muito rígido em relação à língua, aos usos da língua. Entendia a gramática do português em detalhes. Dizia que, quando chegou ao Brasil, com dezessete anos, sem nenhum conhecimento do português, uma vez decidido a ficar, resolveu que, antes de prestar o vestibular ou até mesmo tentar se expressar na língua local — que era também a língua de seu pai —, deveria aprendê-la à perfeição. Passou meses estudando, enclausurado, acredito que com a ajuda de algum professor, e só entrou na universidade Mackenzie, em São Paulo, para estudar engenharia, quando se considerou fluente.”

“JOHN”
• Julia de Souza
• Editora Âyiné (110 págs.)
• R$ 79,90
• Lançamento neste sábado (9/12), das 11h às 14h, na Livraria Quixote, Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi.