Na trama, um quarteto de jovens se encontra numa temporada numa residência de verão
 -  (crédito: Imovision/Divulgação)

Na trama, um quarteto de jovens se encontra numa temporada numa residência de verão

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Quando jovens, acreditamos ter o mundo aos nossos pés. Leon não tem dúvidas disto. Para finalizar seu segundo romance, viaja com o melhor amigo, o fotógrafo Felix, para uma temporada de verão no Mar Báltico, Norte da Alemanha. Não há sequer um momento do prometido idílio - e Leon, que só vê o mundo através do próprio ego, não percebe nada ao seu redor.

"Afire", novo filme do cineasta alemão Christian Petzold, estreia nesta quinta (9/11), no cine Ponteio, com ótimas credenciais. Acabou de vencer o prêmio da crítica de melhor filme internacional da Mostra Internacional São Paulo - no Festival de Berlim, levou o Grande Prêmio do Júri.

O drama que se desenrola a partir da chegada dos dois personagens à casa de veraneio oscila entre a ironia e a tragédia. Do carro quebrado na estrada, o que obriga a dupla a carregar as bagagens por alguns quilômetros, ao encontro com uma colega de quarto que não estava nos planos, a primeira parte da narrativa mostra um grupo de jovens comendo, dormindo, bebendo e, eventualmente, dormindo juntos.

Leon (Thomas Schubert) é autodestrutivo e egocêntrico, o oposto do solar Felix (Langston Uibel). A presença de Nadja (Paula Beer), que ele não consegue entender, só aumenta seu ressentimento. Há um quarto personagem, o salva-vidas Devid (Enno Trebs), que Leon ora ignora, ora debocha.

A leveza quase fútil da parte inicial vai embora com os incêndios. O fogo, que se aproxima rapidamente, afetará radicalmente a vida desse grupo de pessoas. "A floresta é um lugar muito importante para a Alemanha, para o povo e os mitos alemães. Quando as florestas queimam, perdemos nossas lendas", afirma Petzold na entrevista a seguir ao Estado de Minas.

Não há como gostar de Leon, seu protagonista. Isto foi, obviamente, proposital, não?
John Wayne, em "Rastros de ódio" (1956), é um idiota, fascista, racista. Mas, ao longo de 90 minutos, ele é muito interessante. O que quero dizer é que o herói, o protagonista, não deve ser uma figura simpática. Ele tem que me provocar. Pode ser triste, idiota, ou desesperado. Não me interessa um cara legal. Leon é um idiota desesperado, mas que, depois de 100 minutos, consegue ver, aprender alguma coisa.

Um ponto crucial vem da pergunta que Nadja faz a Leon: "Você vê alguma coisa ao seu redor?" Esta questão foi uma referência para você no roteiro?
Veio de "Alice nas cidades" (1974), de Wim Wenders, que é muito importante na minha vida e trata de um fotógrafo tão autocentrado que esqueceu como ver. Isto impulsionou "Afire", já que temos diante de nós um jovem que só se relaciona consigo próprio. Ele tem que reaprender a ver o mundo, mesmo que através da dor.

Todos os personagens centrais são jovens. É complicado tratar de uma geração que não a sua?
Há algumas coisas sobre cinema que pensei quando estava fazendo este filme. Uma delas é que seria melhor não fazer parte de uma geração para falar sobre ela. Quando Antonioni fez "Blow-up" (1966), ele já era velho para a cena que retratava (a chamada Swinging London). Acho que ele precisava de distância para contar aquela história. Também acho que, às vezes, jovens podem fazer filmes melhores sobre seus pais do que sobre eles próprios. Acho realmente importante não estar do lado de dentro. Além disso, meus filhos têm a mesma idade que os personagens. Conheço o suficiente desta geração.

O filme carrega nas ironias não só sobre as artes, mas sobre os artistas. Você, de certa maneira, falou de si próprio por meio das personagens?
Logo que comecei o roteiro, pensei que nunca fui um idiota como Leon. Mas devo dizer que, no dia em que estávamos ensaiando a cena sobre o romance ruim de Leon, os atores vieram falar comigo. Realmente escrevi algumas páginas daquele romance, e foi um trabalho duro, pois eu sabia que tinha que ser ruim. Pois eles começaram a rir do meu romance e vieram me questionar sobre meu segundo filme. As lembranças começaram a vir e fiquei meio encabulado. Foi em 1996, e fiz um filme sobre garotas bonitas, homens jovens com armas, já que era um filme de gângster. Era basicamente um filme em que eu brincava de ser um diretor e queria mostrar como era inteligente. Os atores me perguntaram o título. Disse que era "Cuba libre" e eles começaram a gargalhar. O título do romance ruim do Leon é "Club sandwich". Ou seja, basicamente a mesma ideia.

"Afire" foi filmado no Mar Báltico. Você precisava de incêndios para contar a sua história. Como isto aconteceu?
Para começar, devo dizer que o Mar Báltico é realmente chato. Mas há duas coisas interessantes: ali está a melhor costa da Alemanha. Não são praias fantásticas, mas é uma costa que tem muito a ver com os pintores românticos alemães, como Caspar David Friedrich. Tem algo a ver com um desejo profundo. Então, no verão do ano passado, quando estava filmando, os incêndios estavam a 10km de distância. As florestas estavam pegando fogo, de vez em quando ouvíamos as sirenes. Algumas das que estão no filme são originais. Aquilo é parte da nossa realidade. Não sou uma pessoa esotérica, mas, de vez em quando, você escreve sobre alguma coisa e ela realmente acontece. Devo também dizer que, na Alemanha, um incêndio florestal não é apenas uma catástrofe. Aqui, quando temos uma crise, vamos para a floresta caminhar. Em outros países, as pessoas vão para a praia ou para as montanhas. A floresta é o lugar onde nós podemos nos encontrar ou nos perder. É um lugar muito importante para a Alemanha, para o povo e os mitos alemães. Quando as florestas queimam, nós perdemos nossas lendas.

“AFIRE”
(Alemanha, 2023, 102min.). Direção: Christian Petzold. Com Thomas Schubert, Paula Beer e Langston Uibel. Estreia nesta quinta (9/11), nos cines Ponteio 3 (14h30) e Ponteio 4 (19h).