Kierkegaard afirmava que, para sermos quem realmente somos, é necessário passar por um processo de autodescoberta em três estágios: estético, ético e religioso. Neste texto, concentraremos nossa análise apenas no primeiro estágio, caracterizado pela busca do prazer e pela superficialidade, em que se tenta evitar as angústias existenciais. Embora a busca pelo prazer seja algo positivo, a procura excessiva por validação externa pode levar à alienação, dificultando a aceitação da transitoriedade da vida.
Essa temática é central em “A substância”, o novo filme estrelado por Demi Moore, que mostra as consequências dessa busca por uma versão idealizada de si. A protagonista, Elizabeth Sparkle, uma ex-sexy symbol, enfrenta a angústia do envelhecimento ao ouvir de seu diretor que está "velha demais" para ser apresentadora. A insegurança, até então inexistente, é imposta por uma figura masculina, que simboliza a pressão da indústria. Esse episódio a impulsiona a recorrer a uma droga que promete devolver-lhe “a melhor versão de si mesma”, personificada em uma versão mais jovem, chamada Sue.
A relação entre Elizabeth e Sue se torna abusiva. A cada sete dias, Elizabeth envelhece fisicamente e emocionalmente, enquanto Sue assume a vida de celebridade. Elizabeth entra em uma batalha com sua identidade, que se fragmenta à medida que tenta escapar da inevitabilidade do envelhecimento.
O filme reflete a pressão estética sofrida na contemporaneidade. Elizabeth, antes segura, começa a questionar sua aparência após o comentário do diretor. A Substância representa uma dramatização extrema do estágio estético de Kierkegaard, em que a superficialidade leva à perda da identidade e a alienação de si mesmo, frutos de uma busca incessante pela perfeição. Ao evitar se confrontar com a transitoriedade da vida, Elizabeth mergulha em um ciclo de autodesprezo, no qual passa a odiar sua nova persona, Sue.
Esse conflito expõe uma dinâmica comum: a rivalidade entre mulheres de diferentes idades, alimentada por estereótipos de gênero. A mulher mais jovem é vista como ameaça pela mais velha, que teme ser substituída. Esse antagonismo, reforçado pela pressão da indústria e pela figura masculina do patriarcado, gera a ruína de Elizabeth.
A relação entre as personagens simboliza como nos negligenciamos em nome de padrões externos. O filme nos faz pensar sobre até que ponto nos dedicamos ao desejo de agradar aos outros, esquecendo de cuidar de nós mesmos. Ao buscar uma solução temporária para o envelhecimento, Elizabeth se torna refém de suas escolhas e da indústria, que lucra com suas inseguranças. As cenas finais, cheias de mutilações grotescas, mostram a transformação de Elizabeth em um monstro, uma metáfora para os danos causados pela obsessão com a aparência.
Na filosofia de Kierkegaard, a angústia é um elemento necessário para vivermos de forma autêntica, pois ela nos leva a assumir a responsabilidade por nossas escolhas. Ao aceitarmos nossa finitude e transitoriedade, podemos viver mais livremente. O filme ilustra isso ao mostrar que, por mais que lutemos contra o envelhecimento, não há "substância mágica" que nos libere da inevitabilidade da morte.
No fim, Kierkegaard propõe que enfrentemos nossa angústia, aceitando nossa condição humana e nos tornando autênticos ao vivermos com as limitações e possibilidades inerentes à existência. “A substância” apresenta o reverso dessa proposta: uma fuga desesperada da realidade, que conduz à perda da identidade e alienação. O filme nos alerta para os custos de negligenciarmos nossa verdadeira essência em busca de uma perfeição ilusória, que nos desumaniza e, em última instância, nos transforma em monstros. (Texto elaborado em conjunto com a discente Sâmmya Nicolle Cruz Dias)