Existe algo profundamente contraditório na forma como a medicina lida com o descanso. Sabemos, com abundância de evidências, que o corpo precisa de pausas para se recuperar, adaptar e funcionar melhor. Prescrevemos repouso, falamos de recuperação muscular, de sono reparador, de controle do estresse. Mas, quando o assunto é o nosso próprio ritmo, e o da sociedade como um todo, o descanso segue tratado como luxo, fraqueza ou perda de tempo.
No fim do ano, essa contradição fica ainda mais evidente. Dezembro chega carregado de promessas de pausa, férias, celebração. Mas, na prática, o que vemos é o oposto: agendas espremidas, cirurgias “antes que o ano acabe”, pacientes mais ansiosos, médicos mais cansados. Um cansaço que não aparece em exames de imagem, mas transborda na consulta, no centro cirúrgico, na tomada de decisão.
A medicina moderna avançou enormemente em tecnologia, precisão diagnóstica e opções terapêuticas. Evoluímos em robótica, inteligência artificial, técnicas minimamente invasivas. Mas seguimos surpreendentemente atrasados quando o tema é descanso, não apenas como pausa física, mas como componente essencial de saúde.
Descanso não é ausência de esforço
Um dos erros mais comuns é confundir descanso com inatividade absoluta. O corpo humano não foi feito para alternar apenas entre sobrecarga e imobilidade. Descansar é modular carga, não eliminá-la. É permitir que tecidos se adaptem, que sistemas se reorganizem, que o cérebro desacelere sem desligar.
Na prática clínica, isso aparece todos os dias. O paciente que trabalha em ritmo intenso o ano inteiro e, nas férias, resolve “compensar” com excesso de esporte. O corredor que aumenta volume em dezembro porque finalmente tem tempo. O sedentário que decide que janeiro será o mês da virada, e começa tudo de uma vez.
Janeiro, aliás, é um mês revelador. Lesões por sobrecarga disparam. Tendinites, fraturas por estresse, dores articulares aparecem como uma fatura atrasada. O corpo cobra não apenas o excesso recente, mas meses, às vezes anos, de negligência com o descanso estruturado.
A cultura da produtividade infinita
Vivemos sob a lógica da performance contínua. Produzir mais, responder mais rápido, operar mais, atender mais. Essa lógica invadiu a medicina de forma silenciosa. O médico produtivo virou sinônimo de agenda cheia. O bom profissional, muitas vezes, é aquele que não para.
O problema é que o corpo, e a mente, não obedecem a planilhas. A fadiga cognitiva existe. O esgotamento emocional existe. E eles afetam diretamente a qualidade do cuidado. Decisões ficam mais automáticas, escuta mais superficial, empatia mais curta.
Não por acaso, o burnout deixou de ser um termo da moda para se tornar um problema reconhecido globalmente, inclusive pela Organização Mundial da Saúde. Ainda assim, seguimos tratando o descanso como algo que “se encaixa quando der”, e não como parte do tratamento, para médicos e pacientes.
O descanso que a medicina prescreve, mas não pratica
Há uma ironia difícil de ignorar: somos rigorosos ao orientar repouso pós-operatório, controle de carga, retorno progressivo às atividades. Mas raramente aplicamos a mesma lógica à nossa rotina profissional.
Quantos médicos chegam ao fim do ano fisicamente presentes e mentalmente exaustos? Quantos seguem operando, atendendo e decidindo no limite da energia? Quantos confundem resiliência com insistência?
O descanso não é um prêmio por ter sobrevivido ao ano. Ele é um pré-requisito para atravessá-lo bem. Quando negligenciado, o custo aparece, não apenas em forma de doença, mas em perda de qualidade, de prazer e, muitas vezes, de sentido.
Fim de ano: quando o corpo pede silêncio
Dezembro tem um simbolismo próprio. É um mês de balanços, encerramentos, despedidas. O corpo parece entender isso melhor do que a agenda. Não é coincidência que dores antigas reapareçam, que o sono piore, que a tolerância ao estresse diminua.
O erro está em tentar atravessar esse período no mesmo ritmo de março ou agosto. O organismo pede desaceleração, mas seguimos acelerando. E quando finalmente paramos, fazemos isso de forma abrupta, viagens longas, excessos alimentares, álcool, atividades intensas, como se o descanso precisasse ser compensatório. Descansar não é exagerar no oposto. É encontrar ritmo.
O que ainda precisamos aprender
Talvez a maior lição seja simples e, ao mesmo tempo, difícil de aplicar: descanso não é sinal de fraqueza, mas de inteligência biológica. Não é tempo perdido, é tempo investido.
A medicina ainda precisa incorporar o descanso como valor, não como intervalo. Precisa ensinar isso aos pacientes, e praticar internamente. Precisa aceitar que cuidar de pessoas exige energia, atenção e presença, e que tudo isso se esgota quando não há pausa.
Encerrar o ano não deveria ser sobre “aguentar até o último dia”, mas sobre reconhecer limites. O corpo não entende calendário fiscal, metas ou prazos editoriais. Ele responde a carga, repetição e ausência de recuperação.
Talvez, ao aprendermos a descansar melhor, a medicina consiga algo ainda mais difícil do que operar melhor ou diagnosticar mais cedo: cuidar sem adoecer.
E isso, no fim das contas, pode ser a forma mais honesta de começar um novo ano.
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