Mesquita islâmica -  (crédito: Pixabay/Reprodução)

Mesquita islâmica

crédito: Pixabay/Reprodução

As tradições religiosas do Judaísmo, do Cristianismo e do Islã estão passando, nas últimas décadas, por uma grande transformação, genericamente descrita como “fundamentalistas”. O termo é de difícil definição e possui suas particularidades entre os movimentos mais radicais. Entretanto, apesar das suas especificidades, uma característica comum às tradições fundamentalistas é a inerrância dos textos sagrados.

 

A inerrância é a doutrina segundo a qual um livro sagrado, como a Bíblia, é totalmente verdadeiro em todas as suas partes, em tudo que ensina. Não haveria, portanto, falsidades nos escritos que norteiam a fé.

 

Partindo da premissa de que os livros santos são inerrantes e inquestionáveis na sua formulação, as crenças bíblicas são responsáveis, quase sempre, pelas reações dos fiéis e na condução de suas vidas. Essas reações, impulsionadas pela fé extrema, podem, muitas vezes, conduzir para o bem ou para o mau, sem grandes críticas às atitudes adotadas. O fato de ser movido pelo divino foge da esfera humana de duvidar da sua veracidade ou não.

 

 

Durante algum tempo, havia um consenso tácito (algo raro entre os cientistas), em especial ao longo do Século XIX, de que a ciência substituiria as superstições, a tecnologia suplantaria a magia, a medicina destronaria as orações e a política teria precedência sobre o messianismo. Os sinais daquela época condenavam a religião ao ostracismo. “Deus está morto”, assinaria Nietzsche, no auge desses pensamentos filosóficos.

 

A ideia de que “Deus está morto” não se concretizou. Com os avanços da modernidade, acreditava-se na morte da metafísica e na contínua descrença em Deus. Filósofos e historiadores diagnosticavam um futuro marcado pelo desencantamento do mundo nos elementos celestiais e na ausência do etéreo no mundo contemporâneo. A religião estava condenada pela História. Mas o tempo demonstrou o equívoco dessas previsões.

 

O anúncio foi prematuro. Eles estavam errados: a religião ressurge poderosa em todo o mundo. Há um despertar do Islã, uma ascensão meteórica do evangelicalismo protestante, um Cristianismo renascido na Europa e na África, um novo Xamanismo entre os nativos americanos, novas seitas se espalham por todos os cantos. Nessa onda do fortalecimento da fé, gurus e pregadores da salvação fazem fortunas em todos os continentes.

 

Deus está de volta e “Nietzsche está morto”. A defesa da secularização e do abandono das formas de estruturação social baseada na religiosidade foram falácias que alimentaram um período da história recente. A fúria religiosa permanecia presente, como sempre esteve.

 

A fé renasceu, adaptou-se e combinou (ou não) com a modernidade. A necessidade individual ou coletiva de se libertar (algo nunca alcançado, mas sempre almejado) encontrava nos templos ou nas palavras dos líderes das igrejas o bálsamo necessário para conduzir as expectativas, às vezes sofridas, do cotidiano.

 

A “volta de Deus” nas diversas religiões encontra respaldo, em parte, no fracasso das estratégias adotadas para as melhorias socioeconômicas das sociedades. No mundo muçulmano, o fraco desempenho social das políticas adotadas para avivar o pan-arabismo pode explicar o fortalecimento do fundamentalismo islâmico das últimas décadas.

 

O evangelicalismo norte-americano, que reacendeu nos princípios de uma “religião civil”, principalmente, após o 11 de setembro de 2001, tinha como função legitimar e unir a nação em tempos difíceis, defendendo os mitos de origens, valores e ritos públicos, transformando os EUA como o “novo Messias” responsável pela “salvação mundial”.

 

Os candidatos às eleições à presidência de 2024 do país não têm chances de vitória se ignorarem os princípios religiosos arraigados nessa sociedade, cujo otimismo é alimentado pela crença de que “aconteça o acontecer, o Todo-Poderoso protege a América”. Os ideais da fé dos protestantes estadunidenses romperam suas fronteiras e conquistaram legiões, como se vê claramente no Brasil atual, entre os pentecostais, por exemplo.

 

Desde o final do Século XX, a maioria desses movimentos já expressava uma rejeição ao neoimperialismo político e cultural, influenciado, em parte substancial, pela globalização econômica. Na busca por uma inspiração coletiva mais profunda, acabaram por criticar a sociedade moderna fragmentada, individualista e materialista. Perceberam que não havia um projeto mundial que permitisse envolver a todos. A fé vai ocupar esse fosso existencial.

 

Historicamente, as populações se opõem a um mundo ao qual não podem ter acesso. É nesse momento que chegam os profetas e messias que anunciam um Novo Mundo. Esses pregadores, de modo geral, muito carismáticos, mostram o caminho para salvação pessoal ou coletiva, na terra ou no céu, às populações que estão à margem das sociedades, que se sentem rejeitadas e humilhadas.

 

Nas igrejas, templos ou mesquitas, os excluídos sociais encontram uma nova forma de solidariedade, que creem tenha existido em algum momento nas sociedades do passado e que foram destruídas pelas novas tecnologias da tempos modernos. Fortalecem-se nos estudos dos textos sagrados, interpretados, quase sempre, à revelia da mensagem original.

 

Nessa nova conjuntura, há o risco de a política ser substituída pela religião. Esse é um cenário almejado pelas mentes radicais mais fervorosas dentre cristãos, muçulmanos, judeus. Esse impulso extraordinário da fé é alimentado pela capacidade de dar voz àqueles que pouco ou nada contam no mundo e, de repente, se veem como pessoas capazes de tomar iniciativas e desempenhar um papel de relevância.

 

Há, todavia, que observar seus líderes, nem sempre tão santos, que se aproveitam dessa fragilidade humana para profanar os ritos abençoados e disseminar ideais pessoais marcados, muitas vezes, por discriminação, em nome de Deus. Deus, o Todo, é inerrante, mas a sua mais bela criação, o homem, não! Que os que têm fé não se esqueçam disso!