Jéssica Balbino
Jéssica Balbino
Jornalista e curadora de eventos literários no Brasil, escreve sobre corpos dissidentes. Criadora do Margens, projeto que difunde conteúdo sobre mulheres periféricas na escrita.
ARTIGO

Corpo-mangue: onde a vida resiste antes do mar

Entre lama, corpo e mar, documentário sobre os manguezais capixabas revelam como a vida, sobretudo a das marisqueiras, sustentam a conservação marinha, a justiç

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O mangue não é paisagem. Não é moldura. Não é só lama entre o rio e o mar. O mangue é corpo. Manguezal é uma extensão do nosso próprio corpo.  Corpo vivo, pulsante, coletivo. Corpo que sustenta outros corpos. Corpo que segura o mundo para que ele não afunde. Essa compreensão não veio de livros técnicos nem de aulas de biologia veio do contato com Impacta Oceano: Mangue é Vida, documentário realizado no Espírito Santo pela Bloom Ocean, que estreia dia 12 no Sesc Glória, em Vitória (ES) e desloca o olhar ambiental do discurso abstrato para o chão, ou melhor, para a lama, onde a vida acontece. O oceano é parte da solução para a crise climática.

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Precisei de 40 anos para chegar em um documentário que me fez entender que o mangue é fonte de cultura, pertencimento, fonte da própria história e dos povos originários e que precisamos reconhecer, neste passado, a fonte do nosso futuro. 

Assisti ao filme atravessada por uma constatação simples e honesta: eu não entendo de mangue. Não manjo nada de maré, de sururu, de lama que engole o pé. Vivo em Minas Gerais, longe do litoral, numa relação muito mais íntima com a serra, com a terra firme, com o corpo que aprende a se equilibrar no meio do morro. Meu contato com os manguezais sempre foi distante, quase turístico, raso. Impacta Oceano: Mangue é Vida foi meu primeiro contato mais aprofundado com esse território - e talvez por isso mesmo tenha sido tão intenso.

O documentário não me apresenta o mangue como dado técnico ou cenário exótico, mas como vida concreta, narrada por quem está ali todos os dias. Foram as marisqueiras, as lideranças comunitárias, os corpos em luta e trabalho constante que me deram vontade de escrever. Não para explicar o mangue, mas para escutá-lo.

Gravado integralmente em território capixaba - onde se encontra o maior manguezal urbano do Brasil -, o média-metragem parte de uma premissa fundamental: não existe conservação marinha dissociada de quem vive do mangue. Ali, o equilíbrio climático, a biodiversidade costeira e a segurança alimentar deixam de ser conceitos distantes e passam a ser elementos do cotidiano. O manguezal aparece como berçário de espécies marinhas, proteção natural contra eventos extremos, filtro vivo das águas que correm das bacias hidrográficas até o oceano. Mas, sobretudo, aparece como espaço de trabalho, cultura e pertencimento.

O que mais me chama atenção é o deslocamento do foco: o mangue não existe sem as pessoas. E, dentro desse recorte, são as mulheres, em especial as marisqueiras, que sustentam silenciosamente boa parte dessa engrenagem. São elas que conhecem o tempo da maré no corpo, que entram na lama para garantir alimento, renda e continuidade. São corpos femininos, muitas vezes negros, periféricos e invisibilizados, que mantêm viva uma economia inteira enquanto seguem marginalizados nas políticas públicas e nos grandes debates ambientais.

O documentário escancara esse paradoxo ao apresentar iniciativas como a reciclagem das cascas de marisco, que deixam de ser descartadas como lixo e passam a ser transformadas em insumo agrícola. À primeira vista, o projeto dialoga com o vocabulário da inovação e da Economia Azul. Mas, em camadas mais profundas, fala de algo muito mais antigo: reaproveitar para sobreviver. Transformar resto em possibilidade. Fechar ciclos onde historicamente só houve exploração. Nesse processo, as marisqueiras não apenas complementam renda, mas fortalecem autonomia e reconhecimento.

Há uma dimensão política clara nesse gesto. O que o filme evidencia é que a conservação ambiental só se sustenta quando passa por justiça social. Não existe mangue protegido sem dignidade para quem vive dele. Não existe futuro sustentável se os corpos que sustentam esse ecossistema seguem adoecidos, precarizados ou silenciados. O saber que emerge ali - transmitido pelas mulheres da APAPS, por lideranças comunitárias e por projetos como o Sururu e o SaltGen - não é secundário: é central. É conhecimento construído na prática, na experiência, no corpo.

Como alguém que escreve sobre corpo, desejo e resistência, não consigo olhar para o mangue sem fazer essa transposição. O mangue também é corpo dissidente: rejeitado, explorado, visto como sujo ou inútil por quem só enxerga valor no que é domesticável. Ainda assim, insiste. Se adapta. Sustenta. Ensina que vida não acontece na limpeza, na ordem ou no controle, mas na mistura, na fricção, na lama fértil.

Talvez o maior aprendizado desse primeiro encontro com os manguezais capixabas seja esse: proteger o mangue é proteger gente. É proteger modos de existência inteiros, saberes ancestrais, economias invisíveis e corpos que resistem todos os dias para que o mar continue sendo vida e não apenas recurso.

O mangue vive. E enquanto ele viver, haverá corpo em movimento, trabalho digno em disputa e a possibilidade de imaginar futuros mais justos, a partir da lama que tantos insistem em ignorar.

Serviço

Mais informações sobre o documentário aqui https://bloomocean.com.br/#. 

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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