Quem não presta atenção só repara naquilo que já não existe depois do acontecido. Na maior parte das vezes, apenas muito tempo depois.

Vale para as pequenas gentilezas do dia a dia, para as camaradagens entre vizinhos, para o vínculo nas comunidades. Vale para o tempo em que crianças brincavam soltas nas ruas e iam sozinhas para a escola, desde cedo.

Vale para avenidas que eram lindamente arborizadas; vale para a rede de bondes que, em seus quase 70 quilômetros, conectava a Pampulha à Cidade Jardim, cobrindo o Centro, o Barro Preto e a Lagoinha.

Vale para os alfaiates e os especialistas em conserto de canetas-tinteiro, sapatos e relógios. Vale para os estúdios de revelação de fotografias e os cinemas de rua.

 

 

E vale, sobretudo, para as arquiteturas neoclássica, art nouveau e art déco que marcaram as primeiras décadas da recém-inaugurada capital de Minas Gerais.

Hoje, todo mundo acha que essa arquitetura valia muito e que a atual “não chega aos pés”, mas, aparentemente, enquanto seguia sendo derrubada a partir dos anos 1980, não parecia fazer muita falta (ou nenhuma), pelo pouco que sobrou.

E, não tendo sobrado quase nada importante, quem cuida do patrimônio acaba focando naquilo que não era excepcional, mas é o que ainda há para contar a história. É o ecletismo: uma mistura de referências de estilos e épocas diferentes em pequenos e grandes exemplares, imóveis privados ou públicos de uso institucional.

O ecletismo não chega a ser, portanto, um estilo propriamente dito (em minha modestíssima opinião, bem entendido), mas um “combinado” de referências.

Não obstante, têm sido recorrentes nas redes sociais comparativos entre prédios antigos e prédios modernos. Os comentários são, às vezes, indignados, outras vezes raivosos, mas sempre saudosistas. Perguntas como “quando passamos disso para aquilo?”, “onde foi parar o bom gosto?” ou “por que já não se faz arquitetura como antigamente?” dão o tom e tentam conectar a atualidade a uma certa degeneração moral, um símbolo de decadência social e humana. Não se dão conta de que o nazismo, o fascismo e o comunismo prosperaram e colheram suas dezenas de milhões de vítimas a partir de gabinetes instalados em belos edifícios neoclássicos, art nouveau e art déco, enquanto seus líderes e sua elite moravam neles.

 

 

A arquitetura (e os prédios) podem ser belos e inspirados mesmo em momentos obscuros e decadentes, tanto quanto podem ser pobres, pouco inspirados ou até mesmo objetivamente feios em momentos de grande evolução social e descobertas.

Mas é sempre uma pena — sobretudo em momentos de grande evolução humana e de explosiva criatividade, quando o avanço científico e as descobertas na área da saúde reduzem a mortalidade a níveis jamais vistos e expandem continuamente a expectativa de vida — produzirmos prédios feios e pouco inspirados.

Uma das explicações é quase prosaica e, ainda assim, verdadeira: já não há mais artesãos, artistas e pessoal de obra com capacidade (e em quantidade) para a ornamentação e o detalhe típicos das arquiteturas neoclássica, art nouveau, art déco e eclética. O método atual, as normas construtivas, a legislação trabalhista e a performance econômica e financeira exigida já não permitem elementos típicos dessa época e estilo.

E, com isso, a percepção de qualidade e luxo deslocou-se dos ornamentos, detalhes e itens esculpidos à mão para materiais exclusivos, caros ou duráveis (ou tudo junto).

 

 

Ainda assim, os prédios não precisam ser tão feios, pouco inspirados ou com as proporções todas erradas, porque da proporção, da harmonia e da beleza os prédios neoclássicos, art nouveau e art déco (e até mesmo os ecléticos) jamais abriram mão.

Os métodos mudam, os materiais mudam, os limites da mão de obra se reduzem, a legislação exige, mas não custaria nada contratar profissionais mais qualificados, comprometidos e atentos para projetar prédios mais bonitos, harmônicos e com a proporção correta.

Porque uma roupa cara não substitui um cabide ruim, assim como bons ingredientes não garantem uma receita gostosa, nem um conjunto de dicionários e um suprimento ilimitado de palavras garantem um texto inteligente ou uma poesia inspiradora e com a métrica certa.

A Ópera de Sydney, o Museu Guggenheim e o Palácio do Itamaraty têm tanto valor arquitetônico e relevância histórica quanto o Palácio de Versalhes, o Metropolitan e a Casa Rosada, porque todos foram concebidos por profissionais talentosos e comprometidos, visando ao belo, a um registro histórico de seu tempo, aos limites técnicos e a um senso de proporção e harmonia ímpares.

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Gosto não se discute; harmonia, proporção, inspiração e contexto histórico, sim.

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