Flanar ou não flanar, eis a questão
Flanar é vagar pela cidade sem objetivo prático, observando pessoas, vitrines, edifícios e gestos cotidianos — não para consumir, mas para perceber
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As primeiras lojas de departamentos foram criadas ainda no século XIX, respectivamente Le Bon Marché, Paris, 1838; Harrods, Londres, 1849; e Macy’s, Nova York, 1858.
Mesmo conceito, mesmo espírito do tempo (zeitgeist), abordagens diferentes. Le Bon Marché cria o conceito de consumo como experiência urbana, e introduz um espaço controlado no percurso do flâneur (o caminhante que observa a cidade), traço cultural parisiense. Mais do que um elemento no percurso, cria a ideia de um consumo visual (ver sem comprar), e torna-se um espaço socialmente aceito para “mulheres sozinhas”, um novo destino para encontros ou simplesmente passar o tempo, com uma blindagem social e de costumes.
A loja de departamentos, juntamente com o boulevard e a rede de metrô, integra o motor cultural moderno, inaugurando uma nova arquitetura de grande escala em aço e vidro, com grandes salões, múltiplos andares, restaurantes, cafés, maior grau de luxo e sofisticação (Harrods), maior eficiência logística e amplitude de público (Macy’s).
Mas não nega a cidade. Ao contrário, integra-se à cidade com fluidez, transparência, ambiência, arquitetura, vitrines, fruição.
O primeiro shopping center “moderno” foi o Southdale Center, inaugurado em 1956 num subúrbio de Minneapolis (Edina), nos EUA. Por “moderno”, pense num volume totalmente fechado, climatizado, desconectado da cidade e da rua, sem vitrines. Modelo idealizado para os subúrbios, acessível exclusivamente por carros, essencialmente frio, fechado, opaco, que nega e se isola da cidade.
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Assim como as lojas de departamento são uma consequência natural da urbanização, da revolução industrial e do transporte público, o shopping center “moderno” é uma consequência natural da suburbanização, do espalhamento e de arranjos centrados numa vida onde tudo está longe, e todo o deslocamento acontece com o seu próprio carro.
Se as lojas de departamento foram uma invenção natural, compatível com o estado de coisas, que vieram para potencializar e melhorar a vida nas cidades, a adoção do modelo de shopping center “moderno” (criado para os subúrbios) pelos centros urbanos é uma distorção com consequências graves para as cidades, ao mesmo tempo agredindo o comércio de rua, e criando grandes equipamentos que, em última instância, negam a cidade.
Mas, paradoxalmente, vêm em resposta a um estado de coisas típico de países subdesenvolvidos e mal administrados: segurança. Quanto maior a sensação de insegurança (ou uma insegurança real), mais sentido faz consumir num local fechado, controlado e seguro, ao invés de “exposto” na rua.
Em oposição, quanto menor qualquer percepção de insegurança, quanto mais limpa e bonita estiver a cidade, maior a atração pelo comércio de rua (e das grandes lojas que proporcionem fruição de uma rua a outra da cidade, que tenha vitrines, que tenham uma boa ambiência). Numa cidade limpa, segura e agradável, com transporte público decente, não há shoppings fechados porque… não há razão para haver shoppings.
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O conceito bicentenário das lojas de departamento continua válido, e permanece como um importante elemento do tecido urbano. Os shoppings fechados são apenas um sintoma de uma cidade doente.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
