A presença dos robôs será cada vez maior no nosso cotidiano. Mas... -  (crédito: Pavel Daniliuk/Pexels)

A presença dos robôs será cada vez maior no nosso cotidiano. Mas...

crédito: Pavel Daniliuk/Pexels

“O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente.”

E assim começam a história e a jornada humana, a partir de um invólucro moldado em barro, um receptáculo para a alma que viria a seguir. Não por acaso, os sinônimos mais comuns para alma são vida, espírito, consciência, caráter e sentimento, numa distinção clara entre o que tem caráter, expressão, qualidade e sentimento, e o que não tem. Em última análise, o que tem vida e o que não tem.

Mas a figura feita de barro, inerte, ficou para trás e, hoje, é presença mais constante nos museus antropológicos e na história das civilizações perdidas (como, por exemplo, o mais bacana que conheço, o Museu Quai Branly). Porque, no século 21, o robô é o novo receptáculo, quem sabe na expectativa de preservar a mente e libertar o corpo das limitações naturais, como no anime japonês de Osamu Tezuka lançado em 1952, Astro Boy.

O ano era 1982, mas o futuro criado por Ridley Scott em Blade Runner era o distante (!) novembro de 2019, e os robôs viviam entre nós, humanizados a ponto de sequer nos darmos conta de interagir com robôs. Numa abordagem resgatada de Astro Boy, os próprios robôs evoluíram ao ponto de consciência, e já não sabem que são robôs; acham que são humanos.

Segundo Miguel Nicolelis, não existe inteligência artificial, porque a inteligência artificial não é inteligente, nem artificial: “Não é artificial porque é criada por nós, é natural. E não é inteligente porque a inteligência é uma propriedade emergente de organismos interagindo com o ambiente e com outros organismos, um produto do processo darwiniano de seleção natural. O algoritmo pode andar e fazer coisas, mas não é inteligente por definição”.

Eu concordo, e vou além: vai sempre faltar a capacidade de sonhar, de criar, inventar, sofrer, sentir culpa e demonstrar compaixão. Vai faltar a alma.

Conheço cozinheiros extremamente capacitados, zelosos e obsessivos com quantidades, medidas, balanças de precisão e receitas detalhadíssimas, capazes de obter o mesmo resultado milhares de vezes.
Da mesma forma, aliás - e com a mesma padronização e uniformidade - que uma fábrica de comida congelada ou uma indústria farmacêutica também são.

E com o mesmo resultado: sem alma, e sem emoção genuína para além das ações de marketing, do confete e dos “likes” nas redes sociais.

Para despertar uma emoção qualquer, bastam barulho e exagero. Para emocionar, embargar os olhos, provocar um suspiro ou uma sensação de conforto, acolhimento, só mesmo a alma despejada no fazer, durante esse fazer.

Não precisa ser especialista nem iniciado (apenas atento) para separar os pratos, as músicas, as fotografias, as poesias e os quadros que foram criados sob uma emoção verdadeira, de felicidade, alegria, tristeza ou angústia. São únicas e, de alguma forma, conseguem armazenar e transmitir uma sensação diferente a quem prova, escuta, lê ou observa. E permanecem na memória.

É, certamente, a busca por algo diferente da perfeição e da técnica elevada ao paroxismo. O oposto da previsibilidade, do controle absoluto, da ordem acima de todas as coisas. É o fator… humano. É uma parte da alma doada para o que se pretende criar.

E assim também é a Arquitetura Autoral, aquela que é única e memorável, nunca pelo excesso ou pela presença exagerada e excessiva, mas pela justaposição da proporção, da técnica e de uma identidade marcante, com um quê de imperfeição, de imprevisto, de ousado e, acima de tudo, único.

A Arquitetura Autoral não se manifesta sem uma boa formação e uma excelente técnica, mas o rol do que pode ser ensinado e treinado para por aí. É possível ensinar a técnica, mas não o talento, e é nessa interseção, nesse encontro, que a Arquitetura Autoral pode se manifestar e produzir edificações singulares, feitas para atravessar as décadas sem envelhecer, sem decair e sem perder o poder de atração. Sem perder o “je ne sais quoi”.

Em algum momento (próximo), robôs estarão nas cozinhas de restaurantes. Muito antes disso, ferramentas de “inteligência artificial generativa” terão invadido os ateliers de Arquitetura, produzindo versões sem fim de conceitos e croquis cada vez menos inspirados. Jamais faltarão, claro, bolsos e “likes” nas redes sociais por serem conquistados.

Mas os corações, as mentes, as memórias e o afeto são um outro departamento, e isso, apenas os humanos dotados de alma podem entregar. Pode acreditar.