Gosto das perguntas simples, pois elas carregam um potencial de desvelamento do óbvio. E lidar com aquilo com que nos deparamos todo dia, mas de outra posição — que passa da ignorância ao conhecimento — é, sem dúvida, uma das ferramentas mais fundamentais para viver. É por esse motivo que a filosofia nasce da vida cotidiana, não dos tratados verborrágicos encarcerados no meio universitário.

Ao nos depararmos com essas questões, somos levados a pensar sobre o nosso agir e, consequentemente, sobre nosso estar no mundo. Por isso sempre defendi a filosofia na educação infantil: as crianças estão grávidas de perguntas que mobilizam seu potencial criativo para tentar respondê-las. Ao longo da vida, porém, são cerceadas pela resposta adulta, normalizadora — não necessariamente normatizadora, pois há uma grande diferença entre norma e normal. O primeiro conceito diz respeito a regular o mundo, o que é necessário à civilização; o segundo reduz toda a diversidade ao padrão, ao resultado esperado, ao DSM social-psiquiátrico que classifica os pequenos em caixinhas com siglas neuro-medicamentosas, como TDA, TDAH, TOD, TOC.

É nesse cenário que a educação se encontra. Normatizar não é o mesmo que normalizar. É impossível viver em uma sociedade sem normas, pois elas constituem uma entrada na civilização. No outro lado da ponte, entretanto, é insuportável viver em uma sociedade normalizada, em que as diferenças são estabilizadas a rigor e a critério de uma visão reducionista de ser humano, como se fôssemos apenas um emaranhado de sinapses, células nervosas e lobo frontal. Somos isso também, mas não somos apenas isso.

E as crianças sofrem bastante. Muitas já crescem com o diagnóstico pronto e não sabem — ou não aprendem — a viver como se ele não existisse. Uma das tarefas mais difíceis da existência humana está em nos apaziguarmos com o que somos, buscando alternativas para que sintamos menos culpa e menos ansiedade por atingir um “comportamento normal”. Para isso, criamos dispositivos que, de fato, nos auxiliam nesse reposicionamento diante do fenômeno milagroso da vida: uma boa análise, o sublime da arte, a paixão pelo esporte, a sede do conhecimento, uma nova gramática de afetos etc. A culpa não serve para nada, a não ser para lotar os consultórios neuro-pedagógicos-psiquiátricos-medicamentosos.

É nesse sentido que a culpa de não ser normal tem sido explorada cotidianamente pela “indústria da normalização”, que consegue unir crianças e cuidadores — legitimamente preocupados — em torno de respostas rápidas, resultados eficientes e saídas mágicas, que vendem, ao mesmo tempo, a patologia e a solução. Desde Foucault, sabemos que uma coisa não vive sem a outra. No meio disso, a escola, que tem a diversidade humana como matéria de trabalho, também busca sua medicação.

Se todos nós já nascêssemos sabendo, a educação seria inútil. Ainda bem que somos seres errantes, “errosos”, caminhantes que aprendem, em ato, a direção a seguir. É justamente por isso que aprendemos uns com os outros o capital cultural acumulado por aqueles que vieram antes de nós e que, algumas vezes, será modificado por aqueles que virão depois nós. Isso se chama aprendizagem.

Algumas coisas aprendemos para a profissão. Outras, aprendemos com a profissão. E aqueles que decidiram consolidar a produção social — a que chamamos trabalho — na tarefa de educar, vivem isso de forma duplicada. Diferentemente de outras profissões, em que você aprende - mas não necessariamente ensina - em uma escola aprendemos e ensinamos ao mesmo tempo. Cada professor é uma espécie de ponte que liga o passado ao futuro por meio de uma ação presente. É por isso que ele nunca será substituído por nenhum holograma ou desinteligência artificial, assim como não foi substituído pela criação dos pergaminhos ou dos livros. Sem o mestre, não há travessia. Todas as profissões aprendemos algo, mas apenas a profissão docente se caracteriza, em sua essência, por ensinar algo.

E o que ensina um professor? São várias as especialidades. Alguns ensinam matemática; outros, história e geografia. Mas todos, independentemente de sua formação de origem, trabalham incansavelmente a partir de algo que marca a profissão: a tolerância diante do erro do outro. Um médico é treinado para não errar — faz sentido. Uma imperícia, no meio de uma cirurgia, pode ser fatal. Porém, o professor da Faculdade de Medicina, ao formar o futuro trabalhador da saúde, deve ter como princípio pedagógico a tolerância aos seus alunos que chegam. Afinal, se estão ali, é porque ainda não sabem e precisam aprender.

E essa talvez seja a grande marca da atuação docente: a tolerância humana diante do erro. Não no sentido de normalizá-lo, mas de normatizá-lo — medir a distância entre uma resposta errada e a resposta certa, pois existem métodos científicos, conhecimento construído, saberes organizados historicamente que aquele indivíduo ainda desconhece. Isso não aprendemos para a profissão docente; aprendemos com a profissão docente.

Nesse cenário, ser professor é assumir uma posição de resistência ética. Não resistência contra a ciência, contra a medicina ou contra os saberes técnicos — que, quando bem utilizados, aliviam sofrimentos reais —, mas resistência contra a captura da vida pelo discurso único da normalização. É defender o direito fundamental de cada criança a não saber ainda, a errar ainda, a demorar-se no caminho que é só dela. O professor é o guardião desse tempo próprio da aprendizagem, tempo que a lógica do diagnóstico rápido e da medicalização excessiva tenta encurtar, ajustar, apressar.

Enquanto a sociedade se empenha em classificar o que escapa ao padrão, o docente trabalha justamente com aquilo que escapa: o gesto torto, a pergunta fora de hora, a resposta incompleta, o silêncio envergonhado, a invenção inesperada. Tolerância ao erro, aqui, não é condescendência; é ato pedagógico e político. É sustentar a diferença como potência, e não como déficit. É oferecer ao aluno a chance de reconstruir-se para além do rótulo que lhe foi colado.

Por isso, quando a escola se rende à normalização, ela trai sua matéria-prima: a diversidade humana em movimento. E quando o professor resiste, ele reposiciona a educação no lugar onde sempre deveria ter estado: o espaço da experiência compartilhada, da escuta, da construção lenta e do risco. Educar é arriscar-se no território do não sabido; é suportar a frustração de quem erra, mas também sustentar o espanto diante do que nasce do erro.

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Assim, a profissão docente se ergue como uma das últimas trincheiras de defesa da humanidade contra a ameaça de uma sociedade que confunde diferença com anomalia. O professor ensina conteúdos, sim; porém, antes de tudo, ensina a possibilidade de existir sem pedir desculpas por não ser “normal”. Ensina que o erro é passagem, não sentença. Ensina que, em vez de uma prescrição, às vezes basta uma presença, devolvendo às crianças — e a todos nós — o direito de sermos inacabados.

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