Carro funerário, imagem meramente ilustrativa -  (crédito: Reprodução/Redes sociais)

"E a embarcação estava lá, à minha frente, convidando-me para um cortejo solitário..."

crédito: Reprodução/Redes sociais

Elegemos alguns momentos do ano para revisões pessoais. Convenções sociais, tipo balanço de empresa, sabe? Peço perdão pela sórdida relação com algo que nos recorda a escravidão diária, mas são os empresários são mestres em furtam esses termos vitais sem consultar ninguém.

O balanço não deveria ser relacionado à contabilidade, mas permanecer, ainda que enferrujado, no quintal dos avós. Mesmo que não nos sustente mais e esteja ali solitário, pois o gesto de ter (ou desejar) filhos se transformou em algo muito corajoso para uma geração que faz da Air Fryer seu novo pet e das samambaias sua nova prole. Resistente, ele deveria ter ficado lá, esperando que alguém lhe dê a utilidade a partir do movimento. Metáfora da vida, que não se equilibra quando está estática.

Em um desses dias, com a chuva fina ao sair de casa, condição meteorológica que define bem essa
época do ano, senti-me obrigado a dirigir dentro da velocidade permitida. Não porque a pista
estava molhada, mas devido ao fato de que, à minha frente, seguia solitariamente um carro
funerário.

Tem gente que faz o sinal da cruz quando passa diante da igreja. Eu, quando encontro com um carro desses. Sei lá. Mania. Acho que é uma espécie de moeda que pago a Caronte, o barqueiro sombrio que leva as almas para o reino dos mortos. Essa embarcação contemporânea, antes de me entregar a pensamentos mórbidos, sempre constrói, em mim, a experiência filosófica da finitude, literalmente a condição na qual chegaremos para a última viagem.

Experiência comum e única à nossa espécie, excluso a reação de cães e gatos quando avistavam a extinta “carrocinha” - com a diferença de que, ali, seus companheiros ainda estavam vivos e iam para o encarceramento “contra a vontade”. Como disse Pascal, “o homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza; mas é um caniço pensante.” O fato de se saber mortal faz toda a diferença, para o bem e para o mal, para os vícios e para as virtudes.

Por isso que gostamos de datas que recordam finalizações de ciclos, quando somos incentivados pelo destino - como o encontro com Caronte em meio a uma autoestrada de Minas Gerais – a colocar o caniço pensante que habita em nós a nos preencher com questionamentos e devaneios.

E a embarcação estava lá, à minha frente, convidando-me para um cortejo solitário. E eu, sem coragem para ultrapassá-la. Mesmo sem saber se estava vazio ou se carregava alguém, se esse mortal era jovem ou velho, homem ou mulher, rico ou pobre, feliz ou infeliz, fumante ou moralista, aproveitei para fazer, em baixa velocidade, meu balanço de ano novo. De fato, a morte talvez seja a experiência mais democrática que teremos na vida. Pois chegará a todos, independentemente de classe ou função social.

Tudo bem você ficar sonhando com ideologias utópicas, a finitude continua sendo a única ideia política capaz de nos fazer iguais. Além disso, é de experiência única e intransferível. Ao que me consta, ninguém é capaz de morrer duas vezes, assim como, por mais que parece romântico dizer, ninguém morre “no
lugar” de alguém. Os últimos suspiros, que devem chegar com a consciência da partida, não podem ser transferidos a nenhum outro corpo. Morremos com tudo aquilo que poderíamos dizer ou transferir.

Porém, de forma desavisada, vivemos, ao longo dos anos, como se esquecêssemos desse importante detalhe: somos finitos e isso faz toda a diferença. O contrário disso, por mais tentador que seja pensar na imortalidade, seria insuportável. Lembro do livro do Saramago, “As Intermitências da Morte”, quando a mulher com foice na mão resolve tirar férias. Caos total. Pessoas envelhecendo, corpos decrépitos, gente praticando todo tipo de maldade sem pensar no amanhã, hospitais lotados sem espaço para receber mais ninguém. A imortalidade trataria sérios problemas sociais, políticos, morais, econômicos e filosóficos.

Assim, ao fixar meu olhar em direção ao carro funerário, foi inevitável pensar: será que viveu bem? Sorriu e chorou de acordo com a melodia vital que cada um ou cada uma é capaz de compor? Ou foi ceifado pelo destino em meio à noite chuvosa, solitário em um quarto de uma casa grande, cercado de papeis e títulos incapazes de retribuir um “eu te amo”? Fez as renúncias necessárias que o distanciassem de uma vida sem sentido? Ou foi um mero cumpridor de roteiros construídos por outros autores, no qual ele era, em sua própria experiência vital, um mero personagem coadjuvante?

Partiu com as mãos limpas, deixando de herança o potente desejo de amar a vida? Ou viveu taciturno, melancólico, fazendo oposição a qualquer manifestação de alegria? Será que deu tempo de perdoar seus iguais que, sabedor de que a condição de errância faz parte da caminhada humana? Ou engoliu soberba e ódio como aquele veneno que colocamos para dentro de nosso próprio corpo, esperando que o outro morra?

Rompeu amizades devido a posicionamentos políticos, e nunca mais conseguiu companhia para uma cerveja gelada? Ou resolveu ser mais nobre do que isso e amar a o mundo como ele realmente é, com seus autoritarismos e ignorâncias, mas também com a possibilidade de amigos e amores?

Acreditou que daria tempo, quando se aposentasse, para reconquistar todos aqueles e aquelas que abandonou em troca de uma coisa chamada “carreira”? Ou deu tempo de perceber que ao ser humano bastam as 24 horas, ou menos?

Sua partida será feita com a camisa do time do coração, porque deixou alguém, do lado de cá, se importando com as paixões herdadas? Ou irá com alguma roupa padronizada, paga por qualquer funerária?

Será lembrado nos almoços de domingo de que forma? Ou terá suas fotos jogadas em alguma lixeira da cidade, como resumo daquilo que fez de sua história? Rodeou-se de bons espíritos, daqueles capazes de alargar qualquer alma, ou viveu cercado de pessoas de temperamento sórdido?

Por isso que é bom, de vez em quando, trombar com Caronte em algum roteiro da vida. Para aqueles que desejam fazer diferente, talvez isso faça reduzir um pouco a velocidade e despertar para um olhar atento, checando se, no balanço na existência, caso o Barqueiro apareça sorrateiramente - como geralmente gosta de fazer – o vivente não seja pego com muitas contas a pagar. Dentre elas, o único débito imperdoável: a dívida em relação à felicidade. 

No mais, Feliz Ano Novo! Que o Barqueiro, quando decidir lhe encontrar, não precise de uma embarcação reforçada, pois saberá que carrega em sua viagem uma alma leve e, além disso, várias pessoas dispostas a colocar uma moedinha em seus olhos, acreditando que, por você, vale a pena pagar por uma boa viagem.