Etiene Martins entrevistou a professora Nilma Lino Gomes -  (crédito: Divulgação)

Etiene Martins entrevistou a professora Nilma Lino Gomes

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Eu admito que sempre tive um fascínio pelas intelectuais negras estadunidenses, talvez por achar que essa realidade estava muito distante de mim. Até que, um dia, ganhei de presente da cabeleireira e empresária Betina Borges o livro “Sem Perder a Raiz”. Foi através deste livro que conheci sua autora que é, também, uma das maiores intelectuais do nosso país: a professora Nilma Lino Gomes. Ela é mineira, assim como Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo e muitas de nós. Fez um percurso profissional que inspira e orgulha quem valoriza a educação e acredita em seu poder transformador.


Nilma Lino Gomes é professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi reitora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) e, assim, tornou-se a primeira mulher negra a ocupar o cargo mais importante de uma universidade federal no Brasil. Ela só deixou essa função quando foi convidada para ser ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR/PR) que, em decorrência da reforma administrativa de setembro daquele ano, foi incorporada ao recém-criado Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos. Mas a sua história começa muito antes.


Nilma Lino Gomes ingressou na Faculdade de Educação (FaE) da UFMG em 1984, no curso de graduação em Pedagogia, e concluiu o mestrado em Educação pela UFMG, em 1994. É doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Cumpriu estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra, supervisionada por Boaventura de Souza Santos. Atuou como professora na Faculdade de Educação de 1995 a 2019. De 2002 a 2013, coordenou o Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão Ações Afirmativas na UFMG e integra a equipe de pesquisadores desse programa.


É autora de várias publicações, que incluem livros e artigos derivados de pesquisas de campo e destinados ao público universitário até narrativas de ficção voltadas para crianças e jovens. Entre as obras, destacam-se: “A mulher negra que vi de perto: o processo de construção da identidade racial de professoras negras”, seu primeiro livro publicado; “Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”, fruto de sua tese de doutorado; a obra de ficção infantojuvenil “Betina”; “O menino coração de tambor” e “O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação”. Nesses livros, é enfatizado o universo cultural afro-brasileiro em sua diversidade.


Nesse mês das mulheres, fui bater um papo com ela e compreender qual foi o maior desafio e a maior alegria da sua trajetória.


Etiene Martins - Qual foi o maior desafio que você enfrentou na sua trajetória profissional?

Nilma Lino Gomes - Não sei se posso dizer que tive “o” maior desafio porque são muitos. Nascer mulher, negra e pobre, ser professora/educadora e construir coletivamente uma trajetória até chegar a ser a primeira mulher negra reitora de uma universidade pública federal, ministra chefe de Estado e pesquisadora com bolsa de produtividade científica do CNPq é uma história de desafios e conquistas.

Prefiro dizer “um” dos maiores desafios que enfrentei dentre os milhares colocados, não somente para mim, mas para um grupo de mulheres negras com perfil semelhante ao meu. E qual foi (ou tem sido?) esse desafio? Ser a mulher negra que sou, realizar uma trajetória acadêmica ascendente que me levou a conviver muito diretamente com alguns espaços de poder dominado pela branquitude. Quer seja na universidade ou no governo, o desafio é sempre de não perder o foco do projeto político e pessoal que escolhi nessa vida: atuar para a emancipação do povo negro, principalmente por meio da educação; ter empatia pelas pessoas invisibilizadas e que sofrem, independentemente do seu perfil étnico-racial.

No caso da questão racial, ser mulher negra em meio a uma sociedade colonizada e construída para a branquitude sempre foi um grande desafio. Esse mundo dos brancos, como dizia Florestan Fernandes, produz processos aparentemente sedutores e que, na prática, são armadilhas para aqueles e aquelas que dele não fazem parte e que por uma herança de resistência ancestral passam a acessá-lo, de alguma forma. Mesmo que não seja nos escalões mais altos, pois isso ainda é quase impossível para a maioria da população negra. Mas só o fato de romper a barreira da pobreza, da não escolarização, do desemprego, da subalternidade, isso nos coloca em lugares nos quais a maioria das pessoas negras está ausente.

Estar nesses espaços e lutar para construir um processo de reeducação das relações étnico-raciais e sobre os efeitos nefastos do racismo é compreender que se trata de um projeto coletivo e não individual. Isso é desafiador demais. Conviver com as pessoas não negras que percebemos serem politicamente comprometidas com a transformação social a ponto de enxergarem como a sua própria branquitude opera nos lugares de poder e na subalternização dos negros exige muita sabedoria, prudência, olhar aguçado para conseguir perceber quem está, de fato, disposto/a a enfrentar a violência racista ao seu lado e quem tem apenas o antirracismo como retórica.

Etiene Martins - Qual foi a maior alegria que sua vida profissional te proporcionou?

Nilma Lino Gomes - Todos os títulos e homenagens que recebi do campo acadêmico, político e da militância me orgulham e me alegram muito. Mas uma das maiores alegrias que tive foi durante o período da pandemia.

Recebi o convite para participar da live O Movimento Negro Educador: raça, diferença e educação na obra de Nilma Lino Gomes. Esse foi o tema da série Clássicos, realizada pelo projeto Gênero e Desigualdades, em 2021, no formato remoto, por meio de uma parceria entre o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da UNICAMP, e o Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença, da USP, sob a organização das professoras Regina Facchini (Pagu/UNICAMP) e Carolina Parreiras (Numas/USP). A live contou ainda com a participação e apoio do Larvas Incendiadas, da Diretoria Executiva de Direitos Humanos da UNICAMP (DEDH) e do Comitê Gênero e Sexualidades, da ABA, e foi, depois, repercutida no formato podcast pelo Larvas Incendiadas.

O encontro foi possibilitado por meio de uma entrevista online, a qual teve como participantes as jovens professoras e pesquisadoras negras que me fizeram pertinentes questões: Luciana de Oliveira Dias (UFG), Regimeire Oliveira Maciel (UFABC), Stephanie Pereira de Lima (Crioula), Tayná Vitória de Lima Mesquita (Doutoranda em Ciências Sociais/UNICAMP). Posteriormente, Gleicy Mailly da Silva (Pagu/UNICAMP) passou a integrar o conjunto de pesquisadoras. A coordenação foi realizada por Regina Facchini (Pagu/UNICAMP) e Thiago Coacci (Larvas Incendiadas).

Como resultado dessa tarde de entrevista permeada de sintonia, admiração, respeito, cumplicidade, densidade política e epistemológica surgiu a proposta de construção coletiva de um livro cujo eixo orientador seriam as diferentes interpretações provocadas pela leitura do meu livro “O Movimento Negro Educador”, Vozes, 2017.

E a proposta se concretizou. O livro foi gestado, trabalhado, discutido e amado. Sim, fomos movidas pelo afeto que emancipa. E desse processo resultou o livro Saberes das Lutas do Movimento Negro Educador, no qual cada uma e cada um em diálogo com a minha obra fez emergir outros saberes produzidos pelo Movimento Negro de forma interseccionada entre raça, gênero, sexualidades, epistemologias.

Para a autora e pesquisadora negra que sou, ver minha obra estudada e desdobrada por outras pessoas, negras e brancas, é uma alegria e uma honra. Sinal de que as minhas reflexões reverberam no mundo e ajudam a construir algo novo.