Medicina -  (crédito: EBC)

'Anos depois, já médico, fui trabalhar na rede Fhemig, com colegas altamente engajados na luta antimanicomial'

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O meu choro deve ter sido de súplica para que os que me ampararam ao nascer lavassem as mãos. Desafio quase impossível e motivo de epidemias terríveis. Segundo minha mãe, fui gerado em um hospital psiquiátrico em Ribeirão Preto (SP), durante uma internação do meu pai para se livrar da dependência química de morfina - outra epidemia complexa que aflige milhares de pessoas em todo o mundo. Portador de espondilite anquilosante, que gera dores lancinantes e sem tratamento efetivo na época, ficou dependente dessa droga.

Antes de ser internado em Ribeirão Preto, passou por um hospital em Uberaba, onde teve crises terríveis de abstinência. Muitas vezes, tinha que ser contido no leito protagonizando cenas de desespero e dor para quem o acompanhava.

Em um desses episódios, minha mãe saiu do quarto aos prantos, pedindo ajuda. Encontrou-se no corredor com a irmã de caridade Rita, a qual lhe acolheu e disse que a crise passaria e em breve ele seria transferido para um local adequado.

Ao voltar ao quarto, já estava mais calmo. No dia seguinte, permaneceu por três meses, tendo alta livre da dependência química e com minha mãe grávida. Ao retornarem para Ibiá, onde moravam, passaram por Uberaba. Minha mãe foi até o hospital para agradecer a irmã Rita. Lá, ela foi informada de que naquele local jamais trabalhara uma Rita e não havia ali qualquer irmã de caridade.

Para ela, religiosa, tratava-se de Santa Rita. Manteve-se convicta até sua morte, há 14 anos. Por mais distintas que sejam minhas convicções religiosas, como posso negar?!

Anos depois, já médico, fui trabalhar na rede Fhemig, com colegas altamente engajados na luta antimanicomial. Hospitais psiquiátricos foram locais de muito sofrimento, tortura e abandono. Talvez tenha sido essa uma das primeiras epidemias que ajudei a combater.

Lembro-me que 1958 foi o ano da epidemia de gripe asiática, a qual matou milhares de pessoas em todo o mundo. Nos 10 anos seguintes, passei ileso pela poliomielite, sobrevivi ao sarampo, catapora, caxumba e gripe de Hong Kong. Todas essas catástrofes epidêmicas foram de certa forma banalizadas e abafadas no noticiário pelo pouso do homem na Lua, Guerra do Vietnã, golpes militares, censura e protestos a favor dos direitos civis.

A década de 1970 foi marcada pelas grandes ditaduras na América Latina. Pressionados pela epidemia de meningite bacteriana e as demais epidemias que assolavam o país, surge em 1973 o Programa Nacional de Imunizações (PNI), bálsamo para catástrofes.

Em 1976, entrei na Faculdade de Medicina da UFMG. Foi nessa época que conheci o professor Alcino Lázaro, com o qual mantive laço profundo de amizade até sua partida, em março de 2022.

Alcino e os professores Francisco Eduardo Campos (medicina preventiva) e Jaime Neves (infectologia) me estimularam de maneira singular a estudar as infecções hospitalares. Eu me dediquei de forma especial ao estudo e controle dessa epidemia logo após a conclusão da minha residência e já contratado pela Fhemig.

Após duas décadas de ditadura e sem ter governado um dia sequer, a morte de Tancredo alertou a população para a falta de controle de qualidade da assistência prestada a nossa população pelos hospitais públicos e privados.

Nas décadas subsequentes, a epidemia de Aids, surtos de febre amarela, epidemia de dengue, gripe suína (2009) e superbactérias nos hospitais, ebola na África, SARS (2003) e MERS (2012) fizeram parte do nosso treinamento para o enfrentamento da COVID-19, em 2020.

Grandes epidemias permearam nossas vidas nos últimos 65 anos, quer nós as tenhamos percebido ou não. Seja como sobrevivente ou como ator para enfrentá-las, tenho motivos de sobra para considerar a minha vida profissional uma “vida epidêmica”.