Vertebrados raramente se reproduzem por partenogênese, mas uma arraia mantida em cativeiro na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, parece ter gerado filhotes sem a participação de um macho -  (crédito: Getty Images)

Vertebrados raramente se reproduzem por partenogênese, mas uma arraia mantida em cativeiro na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, parece ter gerado filhotes sem a participação de um macho

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Alguns eventos desafiam as leis da natureza.

Em fevereiro de 2024, uma arraia fêmea de nome Charlotte ficou grávida em um pequeno aquário na cidade de Hendersonville, na Carolina do Norte (EUA).

O animal não havia tido contato com machos da sua espécie em mais de oito anos.

Charlotte deixou desorientados os cientistas do Aquário e Laboratório de Tubarões Team Ecco.

Como ela conseguiu conceber quatro filhotes, flutuando no seu tanque sem um companheiro?

Uma teoria suspeitou de dois tubarões-bambus-de-pintas-brancas que ocupavam o mesmo tanque de Charlotte.

 

 

O motivo foram as marcas de mordidas suspeitas encontradas no corpo da arraia, que podem ser sinais de acasalamento entre os tubarões. Mas isso teria gerado um híbrido incomum de tubarão e arraia.

Os cientistas acreditam que a gravidez pode ter sido o resultado de um fenômeno raro, chamado partenogênese.

A palavra vem do grego parthénos ("virgem"), enquanto "gênese" significa "criação". Neste processo, um óvulo se transforma em embrião sem fertilização pelo esperma.

Charlotte está longe de ser o primeiro animal a conceber filhotes sozinha. A partenogênese é bastante comum nos insetos, como os efemerópteros, mas é mais rara entre os vertebrados.

Desde que um tubarão-de-pala deu à luz em cativeiro em 2001, novos casos vêm sendo registrados em tubarões e répteis. Acredita-se que Charlotte seja o primeiro caso registrado de partenogênese em arraias.

O motivo da partenogênese é um mistério. Alguns cientistas sugerem que ela seja uma última tentativa das fêmeas para conseguir transmitir sua genética adiante.

Arraia
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Vertebrados raramente se reproduzem por partenogênese, mas uma arraia mantida em cativeiro na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, parece ter gerado filhotes sem a participação de um macho

"O objetivo da evolução é transmitir seus genes", segundo o biólogo molecular Kevin Feldheim. Ele usa a genética para estudar populações de tubarões e o acasalamento desses animais no Museu de Campo de Chicago, nos Estados Unidos.

"Uma fêmea que é isolada dos machos, mas que normalmente daria à luz por reprodução sexual, simplesmente não tem essa oportunidade", explica ele.

Feldheim investigou outro caso de partenogênese entre tubarões-zebra no Aquário Shedd de Chicago, em 2008. Ele precisou primeiro eliminar a possível promiscuidade entre os moradores do aquário.

"Não havia evidências diretas de que os machos se acasalassem com as fêmeas, mas, infelizmente, o tanque não tem câmeras ligadas 24 horas por dia", ele conta.

Descobrir quem é o pai dos filhotes de tubarão pode ser ainda mais complicado, já que algumas fêmeas de tubarões podem armazenar esperma por meses depois do acasalamento, segundo Feldheim.

O biólogo então desenvolveu um teste de paternidade para coletar marcadores genéticos, chamados microssatélites. "Eles são usados em casos de paternidade humana, como em séries de TV como CSI: Investigação Criminal e NCIS: Investigação Naval", explica ele.

O resultado do teste confirmou que os filhotes de tubarão-zebra não tinham DNA do pai – apenas da fêmea.

"A questão óbvia é como isso pode acontecer? E a resposta é por partenogênese."

Na maioria dos casos de reprodução animal, os óvulos são produzidos em um processo denominado meiose. As células se dividem e compartilham entre si o material genético e a maquinaria celular. Este processo gera três ramos celulares chamados corpos polares.

Normalmente, esses corpos polares são reabsorvidos pela fêmea. Mas, na partenogênese, um dos corpos polares pode fertilizar o óvulo e formar um embrião viável, imitando a reprodução sexual.

Este processo é diferente da clonagem e traz desvantagens, segundo a cientista pesquisadora Kady Lyons, que estuda tubarões e arraias no Aquário da Geórgia, nos Estados Unidos.

"As células utilizadas não são uma cópia da mãe em papel-carbono", explica ela. Mas, como o óvulo e o corpo polar contêm apenas partes do genoma da mãe, os filhotes acabam tendo menor diversidade genética do que ela, como se pode observar em "indivíduos altamente congênitos", segundo Lyons.

Para algumas espécies, existem vantagens na reprodução assexuada. Algumas populações de lagartos-rabo-de-chicote no México e na Califórnia (EUA), por exemplo, são formadas apenas por fêmeas, que se reproduzem assexuadamente.

A espécie evoluiu uma forma incomum de manter sua diversidade genética por meio da partenogênese, dobrando o número de cromossomos nos óvulos das fêmeas que se reproduzem assexuadamente. Este procedimento traz vantagens, pois permite que a espécie colonize novas áreas e evita certas armadilhas, como as doenças sexualmente transmissíveis.

Mas também existe um custo: o seu DNA absorve mais mutações genéticas prejudiciais com a partenogênese do que com a reprodução sexual, na ausência de seleção natural.

Efemérida
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As efeméridas costumam se reproduzir por meio de partenogênese

Infelizmente, nem todas as espécies são tão adaptadas à partenogênese quanto o lagarto-rabo-de-chicote. Os filhotes de tubarão gerados por partenogênese, por exemplo, costumam ter vida curta e raramente atingem a maturidade sexual.

"Existe falta de variação genética nos filhotes, o que pode gerar a chamada expressão de alelos recessivos delirantes", explica Feldheim. Em outras palavras, apesar da sua concepção milagrosa, os vertebrados que nascem por partenogênese podem ter vida curta.

Lyons participou de um teste de inseminação artificial em tubarões-zebra. Os cientistas estudaram a possibilidade de sobrevivência entre filhotes produzidos sexualmente e por partenogênese.

O estudo concluiu que os indivíduos gerados por partenogênese viveram, em média, um ano a menos. Muitos demonstraram comportamentos que reduziam suas possibilidades de sobrevivência: eles nadavam desequilibradamente, giravam, ficavam de ponta-cabeça e tinham dificuldades de alimentação.

Kady Lyons afirma que não ficou surpresa ao observar evidências de partenogênese em arraias. Mas o caso de Charlotte não solucionou todos os mistérios em torno deste fenômeno.

"Uma coisa que não sabemos é se existe um gatilho para que as fêmeas se reproduzam desta forma", segundo ela. "Nós apenas consideramos que, quando você tem meninos e meninas juntos, eles irão fazer o que é preciso."

Mas é em situações únicas que a partenogênese ocorre com mais frequência – como entre os animais mantidos em poder dos seres humanos.

"Obviamente, a vida encontra um caminho", conclui a cientista.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.