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Estado de Minas

População de BH vivia rotina às margens do golpe militar

Em 31 de março de 1964, ação militar não passava de burburinho no dia a dia de BH


postado em 31/03/2014 00:12 / atualizado em 31/03/2014 11:11

Avenida Afonso Pena: nas conversas de rua, futebol, carros, bailes e moda tinham mais espaço que as ações contra Jango (foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro/EM - 1964)
Avenida Afonso Pena: nas conversas de rua, futebol, carros, bailes e moda tinham mais espaço que as ações contra Jango (foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro/EM - 1964)

O fim da quaresma ainda era tempo de relembrar o carnaval memorável de 1964, quando o Brasil recebeu a mais famosa das atrizes de cinema da época, Brigitte Bardot, que se refugiou em uma casa de praia próxima a Cabo Frio. Revistas estampavam fotos exclusivas da atriz na última semana de março, quando ela declarava: “Nunca passei férias tão felizes como estas”. O país estava nos holofotes e alcançava notoriedade internacional. Enquanto os cinemas daqui ficavam lotados com a exibição de O satânico Dr. No, com o galã Sean Connery, e Lawrence da arábia, o filme brasileiro O pagador de promessas, de Anselmo Duarte, recebia elogios em Nova York. Minas Gerais, que acabara de receber a visita do príncipe herdeiro da Noruega, Harald, também estava nas manchetes novamente: havia especulações de que uma moradora de Poços de Caldas poderia ser a verdadeira princesa russa Anastácia. Quem não estava antenado nos bastidores da política mal imaginava que em três dias o regime militar se instalaria, com a ajuda dos políticos e generais mineiros, e se arrastaria numa ditadura por 21 anos.

Enquanto os belo-horizontinos comemoravam em 28 de março o sábado de aleluia em bailes nos clubes da cidade, os generais Olímpio Mourão Filho e Odílio Denys se reuniam com o governador do estado, José de Magalhães Pinto, em Juiz de Fora, para discutir a derrubada do presidente João Goulart. A essa altura, havia rumores de um golpe, mas a maioria da população continuou levando uma vida normal. Era o caso da artista plástica Iole di Natale. Naquele dia, ela encerrava sua exposição de desenhos e gravuras no Grande Hotel de Ouro Preto. A italiana naturalizada brasileira frequentou a cidade de 1962 a 1969, onde conheceu os festivais de inverno. “Era um banho de cultura. Foi lá que vi pela primeira vez O gabinete do Dr. Galigari, primeiro filme expressionista. Ouro Preto me formou, o Barroco mineiro foi nossa base. Ia para lá e voltava com 30, 40 desenhos. Naquela semana santa houve procissões com obras do Aleijadinho. Foi um período de excelência, apesar de toda a repressão”, afirma Iole, que não percebeu qualquer movimentação das forças opositoras ao governo. “Praticamente não me afetou. Aquele dia foi mais um sábado”, completa.

Especial sobre os 50 anos do golpe militar


No domingo de Páscoa, dia 29, 300 mil assistiram à encenação da ressurreição na capital mineira. No dia seguinte, famílias visitavam os novos animais do zoológico e conheciam os modelos inovadores de caminhonetes da Chevrolet. Apesar da tensão no ar, a véspera do golpe foi mais um dia na rotina do cidadão comum, como lembra o aposentado Braz Filizzola Neto, hoje com 70 anos. Na época tinha 21 e morava no Bairro Funcionários, na Região Centro-Sul. Ele considera uma “mudança velada” a transição para o governo militar, ocorrida no dia seguinte, quando o general Mourão Filho enviou tropas mineiras em direção ao estado da Guanabara para destituir Jango, acusado de manter relações com regimes comunistas.

Um dia comum

A manhã do dia 31 não foi diferente dos dias anteriores para os belo-horizontinos. Braz Filizzola lembra que nas conversas de rua no Centro da capital o burburinho de uma ação militar contra a “ditadura comunista” de João Goulart estava no ar, mas o clima era de expectativa e não de tensão. “Era uma coisa muito distante e para a maioria parecia que ia ser uma coisa boa. A notícia era que (os militares) iam acabar com o comunismo. Mas aquele dia foi mais um dia na minha vida, não mudou nada”, relembra.
Os dias que se seguiram revelaram um novo poder no Brasil, mas a ditadura não transformou da noite para o dia o cotidiano da grande maioria das pessoas, muito menos para quem não militava contra o governo. “A gente tinha uma vida normal. Todo domingo ia ao campo Sete de Setembro ver o Atlético Mineiro jogar contra o América. Era clássico de multidão”, conta Filizzola, que trabalhava em um banco. “Eu era muito moço, frequentava com uma turma os bares. Continuamos fazendo a mesma coisa. A gente saía dos bares e ia para os bailes. Levava uma vida tranquila, desde que não se envolvesse”, disse, ao se lembrar de um colega assassinado pela ditadura.

Vida que segue

Em março daquele ano, a Semana de Moda de Paris não havia trazido muita novidade, e a tendência do início da década continuou a mesma em 1964. Entre saias rodadas e sapatos altos, aos 18 anos, Efigênia Tereza Ribeiro da Silva escolhia diariamente um modelo comportado para ir ao trabalho, em uma companhia de seguros. Nos fins de semana, ia ao bailes para “dançar agarradinho” um bolero ou uma valsa. “A vida era tranquila”, lembra. A capital mineira segura e efervescente culturalmente se manteve assim após o golpe, segundo ela, que, no entanto, pondera: “Em todo lugar tinha um militar de olho. Todo mundo falava para a gente conversar pouco. Nas faculdades e escolas, colocavam um espião. Mas não atrapalhava a nossa vida”, conta.

A justificativa para a sensação de segurança dos que aqui viviam é fruto do cenário do golpe, como explica o doutor em ciências sociais e professor do Departamento de História da PUC Minas Marcelo Cedro. “BH, como outras capitais, seguiu esse caminho. O golpe teve conivência de vários setores da sociedade, inclusive da classe média, das elites empresariais, dos banqueiros e dos industriais. Eram setores que viam com bons olhos inicialmente esse clima de transformação”, explica. O professor diz ainda que o medo de uma revolução socialista no governo de Jango parecia realidade em meio ao contexto da Guerra Fria. “O cidadão comum não percebia a situação de forma muito clara. Havia uma habilidade grande do governo, que inicialmente não fechou o Congresso. Havia sempre o discurso de que aquilo deveria ter sido feito mesmo. O cidadão continuava frequentando os mesmos lugares.”

Impacto tardio

Por isso, os sucessos de Jorge Ben e o cinema inovador de Glauber Rocha chamavam mais a atenção naquele momento. A situação era a mesma nas outras capitais do país. Os dias que antecederam a deposição de Jango foram marcados por algumas movimentações, como um comício convocado pelo próprio presidente, no Rio de Janeiro, e a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo, um protesto da oposição. Mas o cotidiano não foi afetado, segundo o escritor e jornalista Roberto Sander, que acaba de lançar o livro 1964, o verão do golpe, em que faz um panorama dos meses anteriores à tomada do poder pelos militares. “O impacto não era sentido pelo cidadão comum. O trabalhador, como um bancário ou um operário de obra, não via o que acontecia nos bastidores da política. Aquela rotina do dia a dia não foi quebrada. Até porque não houve resistência. A resistência veio depois”, conta.

Segundo Sander, somente com o passar dos anos a população começou a perceber que a ditadura não tinha mais data de validade. Quando o governo não cumpriu a promessa de realizar as eleições em 1965 e os candidatos tiveram os direitos políticos cassados, até mesmo aqueles que apoiaram a instalação do regime enxergaram a radicalização. “Ficou claro que era ditadura. Os protestos se tornaram rotina nas grandes cidades. Vem o AI 5 (Ato Institucional 5), e o Congresso é fechado. A repressão fica mais brutal, e as pessoas começam a ficar com medo”, diz. A classe média, antes complacente com o golpe, vê os próprios filhos irem às ruas e serem presos. “A classe média se sente traída. As pessoas ficam com medo de sair, de falar. A ditadura mostra a verdadeira cara”.


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