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Estado de Minas PENSAR

Argentino Tute lança no Brasil tiras de humor unidas pela psicanálise

Em entrevista ao Estado de Minas, cartunista fala sobre o divã no país vizinho: 'Penso que há na Argentina uma tendência à melancolia'


07/10/2023 04:00 - atualizado 07/10/2023 00:14
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Cartunista argentino Tute
Tute: relatos de um país na terapia (foto: Divulgação)

 

O cineasta estava em Buenos Aires para se encontrar com o escritor cujo livro ele adaptaria para as telas. Aproveitou a visita à capital argentina para comprar um presente para a neta. “Entro na loja de roupas para crianças; são dez horas da manhã e está tocando Nina Simone, alguém que você ouve quando quer cortar os pulsos. Este país é impraticável.”

O cineasta indignado com a verve melancólica dos portenhos era Hector Babenco (1946-2016); argentino naturalizado brasileiro, que filmou “O passado” (2007), romance de Alan Pauls sobre um tradutor com perda de memória, tendo o mexicano Gael García Bernal no papel principal.

Nada disso tem a ver com o recente lançamento no Brasil de “Tua terapia” (Perspectiva), coletânea de tiras de humor em torno do tema psicanálise, originalmente publicadas pelo artista gráfico argentino Tute no diário “La Nación”.

Ou melhor, tem tudo a ver. Foi uma associação livre que me ocorreu quando encontrei na página 120 do livro a tira em que o personagem diz: “Tomar consciência é doloroso. Todos os finais são tristes. Um final feliz é um final que ainda não terminou”.

Começo a entrevista com Tute - seria por videochamada, mas ele desligou a câmera - abordando a tendência depressiva dos argentinos? Melhor não. Posso inadvertidamente roçar algum complexo (com o perdão de Jung por citá-lo banalmente). Recorro então a Alan Pauls e sua afirmação de que é difícil exercer uma profissão quando há “um gênio na vizinhança”. Ele se referia a Borges, naturalmente.

Mas penso que Tute talvez se identificasse, já que escolheu a mesma profissão do genial Quino (1932-2020) e, como se isso não bastasse, é filho de Caloi (1948-2012), provavelmente o segundo mais famoso cartunista argentino, que publicou durante décadas uma popular tirinha no “Clarín”. 

Ele não se identificou.

"Nunca foi um problema. Tive o inconveniente da influência em termos estilísticos e em relação aos universos temáticos escolhidos para fazer humor. Queria me parecer com meu pai e com Quino. Nos meus primeiros anos, estava aprendendo sem saber. Tinha um professor em casa. Com o fato de vê-lo todos os dias pensar uma ideia e entregar a tira no jornal, quando tive que me sentar na prancheta, me dei conta de que estava me preparando a vida toda."

Dou voltas e voltas na conversa e faço da hipótese da tendência depressiva dos argentinos a minha penúltima pergunta. A última é sobre a possibilidade da eleição à presidência do ultradireitista Javier Milei, convenhamos, um nocaute.

Tute pareceu não gostar da antessala do nocaute.

"Não iria tão longe falando em depressão, mas, sim, em nostalgia. Há um exercício de nostalgia muito mais frequente deste lado. De toda forma, essa é uma generalização e, como toda generalização, é injusta. Imagino que haja brasileiros e brasileiras melancólicos. Mas, jogando com a generalização, penso que há na Argentina uma tendência à melancolia. Não me disponho a tentar explicar com o quê isso tem a ver, se com o porto, as despedidas, a crise, a música, não sei."

Fim da entrevista. Terei sido injusta? Superficial? Preconceituosa com os argentinos? Ou encontro uma resposta satisfatória para essas dúvidas ou as esqueço de vez. Um final ambíguo é um final que ainda não terminou.
 

Leia, a seguir, a entrevista do cartunista Tute (autor de “Tua terapia”) ao Pensar:


Por que decidiu fazer da psicanálise o tema de sua tira no jornal diário “La Nación”?
Os temas que me ocorrem são os que já estão na minha vida. Tudo o que aparece nos desenhos é produto do meu universo de interesses. Por um lado, me parece apaixonante a técnica psicanalítica. (Sigmund) Freud (1856-1939) foi um dos homens mais revolucionários da história humana e, sem dúvida, do século 20. Com 18 anos, comecei a fazer terapia e me pareceu um espaço muito interessante. Tenho 30 anos de terapia e continuo achando esse espaço muito interessante para baixar um pouco a bola e refletir. Além disso, acredito que humor e psicanálise têm um parentesco muito íntimo, em todos os sentidos - no uso da palavra, na relevância da linguagem, nos sentidos que se escondem por trás da palavra. O tempo todo estamos brincando com o que se diz e com o que não se diz, com o que se esconde por trás do que se diz. Há também a síntese como elemento comum. É tão importante produzir humor com síntese como é para os psicanalistas fazer uma intervenção que necessita da síntese para ser útil ao analisando. E às vezes necessita também do humor, porque o humor viabiliza, possibilita, é habilitante. E é muito propenso ao humor esse espaço de encontro entre dois estranhos, um na caminha e o outro escutando seus mistérios inconfessáveis, em uma salinha. É realmente curioso o trabalho que ocorre aí, é muito chamativo.

Os assuntos mais constantes de “Tua terapia” parecem ser a identidade e as dificuldades do amor. Está de acordo?
A solidão, a morte, as dificuldades da comunicação, a identidade, a dificuldade do amor… São esses os temas. Ao longo da vida, abandonamos fantasmas e incorporamos novos fantasmas. 

Há humoristas que dizem que hoje são tantos os limites impostos ao humor que se tornou difícil fazê-lo. Qual é sua opinião a respeito?
Não gosto dessa ideia de que já não se pode fazer humor com nada porque não creio que esteja certa. Sempre houve limites para o humor. Essa é uma queixa que parte de um lugar com o qual não simpatizo, de pessoas que querem fazer aquele velho humor. Se a sociedade já não ri dessas piadas, a sociedade mudou, e o humor tem que acompanhar. O humor é um espelho social, tem que seguir as mudanças, e não ficar para trás. O pior que pode acontecer a um humorista é cair do seu tempo. Também não me agrada a ideia de que o humor não tem que ter limites. O humor sempre tem limites e é bom que seja assim. Todos estamos o tempo todo nos auto censurando para viver em sociedade. Não se diz tudo o que se pensa. Se vou publicar num jornal que chega para toda a família, há limites e não é preciso que ninguém te diga isso. Há também o limite da linha editorial do órgão de mídia, que tem interesses políticos determinados. Temos que jogar dentro desse campo. A astúcia do humorista é saber se mover em campo. É óbvio que o humor tem limites a saltar e a obedecer. É preciso que, dentro desses limites, você consiga provocar o sorriso e a reflexão.


Num momento em que a vertente da Terapia Cognitivo Comportamental parece dominar o cenário e a psicanálise está escanteada, você não se sente um pouco anacrônico com sua tira eminentemente psicanalítica?
Já declararam a morte da psicanálise tantas vezes e, felizmente, ela segue viva e quicando. Tenho a impressão de que as terapias breves, as técnicas de coach, que estão na moda, não têm nada a ver com aquilo que a psicanálise faz, que é mais profundo e leva mais tempo. A psicanálise não aponta para a cura. A psicanálise diz respeito a conhecer a si mesmo, a entrar em contato com o inconsciente. Quem faz psicanálise não deve aspirar à cura, mas ao autoconhecimento. As terapias breves podem oferecer uma solução a curto prazo, mas nunca a longo prazo. E o que não se resolve na raiz volta a aparecer. Os trabalhos de coach me parecem muito atraentes, muito sedutores, mas muito pouco eficazes para as coisas mais profundas. Neste sentido, é um divisor de águas. Ou você considera o inconsciente como uma parte fundamental da existência ou não. Estou ao lado dos que creem que o inconsciente é parte da vida.

Qual é sua familiaridade com o cartum brasileiro? Há artistas daqui que admira?
O Brasil tem grande tradição de humor gráfico e caricatura. Vocês têm essa espécie de Quino brasileiro que é o Ziraldo, que tive o prazer de conhecer e encontrar em mais de uma ocasião. Gosto da Laerte, do Adão Iturrusgarai e gosto muito também de um caricaturista que tem uma linha muito fina, muito delicada, que é o Loredano.

O futuro do humor gráfico é digital?
Em termos de divulgação massiva acho que os canais vão ser digitais. Estou convencido de que hoje tenho mais leitores nas redes sociais do que no papel. As redes são muito úteis profissionalmente. Publico um desenho e rapidamente tenho a resposta. Quando comecei, sonhava que isso acontecesse e não acontecia. Levava a tira (para o jornal), era publicada e, para ver a reação dos leitores, tinha que ir a um café e esperar ver alguém lendo o jornal. Hoje isso é imediato. É quase como um ator que termina seu número, cumprimenta o público e recebe o aplauso. Nesse sentido, me parece uma grande notícia tudo o que está acontecendo. O desafio agora consiste em conseguir a migração para o digital que funcione tanto no papel quanto no digital; o desafio é não ficar estanque em nenhum lado. Mas acho
que o humor gráfico tem muitas possibilidades.

A Argentina está diante da perspectiva de eleger o ultradireitista Javier Milei à presidência. O país terá que se deitar no divã?
É interessante levar isso para o campo da psicanálise porque acho que aquilo que nos ocorre individualmente se dá também no plano coletivo. O conflito entre a pulsão de vida e a pulsão de morte se verifica também socialmente. Coletivamente, há uma tendência preocupante (na Argentina). Cabe analisar o que está acontecendo, por que nos inclinamos a uma opção tão perigosa. De toda forma, tenho esperança de que aquilo que se viu refletido nas primárias tenha sido apenas uma advertência, e não o resultado final. Tomara que ganhe a pulsão de vida, e não a de morte, que votemos por uma opção mais saudável. Mas é preciso colocar tudo sob análise. Há um grande descontentamento com os partidos populares, que não deram as respostas esperadas. É preciso rever o que acontece e começar a dar as respostas que o sistema democrático está devendo.
 
PERSONAGENS CONSTANTES
Em “Tua terapia”, o personagem que mais aparece é um certo Hugo, que enfrenta diversas situações e, em determinado momento, se apresenta como um “suicida simpático”. Nos dois volumes seguintes da trilogia psicanalítica de Tute - “Humor al diván” (2017) e “Superyó” (2021) -, o autor concentrou as histórias em Ruben e Mabel. “Todos somos Ruben e todos somos Mabel em algum momento. Os personagens mudam, têm inclusive idades diferentes. Um dia são vítimas, no outro são algozes”, diz o humorista. Ele afirma esperar que os dois volumes seguintes da trilogia também sejam lançados no Brasil. 
 
Tua Terapia , Juan Matías Loiseau Tute
Tua Terapia - Juan Matías Loiseau Tute (Autor), Gabriel Rolón (Artista) (foto: Reprodução)
 
 
“TUA TERAPIA”
Tute
Perspectiva
160 páginas
R$ 89,90



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